Talentos

NUANCES DE DOIS MUNDOS

O homem bem sucedido revisitou o seu passado, transitou por ruas que ancoraram a sua infância, cenários não aprazíveis à vista, becos fétidos que assustam mais o adulto bem nutrido do que a criança mirradinha que perambulava por aquela região há três décadas.
As cidades modernas têm uma peculiaridade, poucas quadras separaram um nefasto submundo das áreas mais valorizadas, assim, pouco tempo depois, o homem entrou em um luxuoso prédio onde era aguardado com o “status” de uma celebridade.
O responsável pela portaria do edifício, um mulato grande, sexagenário, com marcas de queimaduras no lado esquerdo do rosto, sorriu para o homem, que retribuiu com um aceno, antes de embarcar no elevador privativo.
O recém-chegado foi até o penúltimo andar promover uma palestra.
Jovens bem vestidos lotaram o amplo auditório para conhecer a história de Naldo, menino macérrimo, que ganhou o mundo para escapar do caos doméstico e da fome, sua fiel companheira durante anos, e suas peripécias para construir uma história de superação.
Um homem alto e forte, que tinha um leve desvio no septo nasal, fez o papel de mestre de cerimônias, apresentou o convidado como um amigo de longa data, e acomodou-se em uma poltrona na primeira fila.
A plateia acreditava que mundos díspares seriam descortinados, mas o narrador optou por explicitar as semelhanças, os pontos de convergência de universos aparentemente antagônicos.
O palestrante, forjado nas ruas e lapidado pelo mundo corporativo apresentou o seu propósito, demonstrar que os desafios testam os valores dos indivíduos de forma semelhante nas ruas e nos escritórios.
À medida que foram apresentados os relatos das provações e riscos que são impostos aos moradores de rua, a plateia entendeu o porquê de não ser pejorativa a alcunha de Naldão para um personagem de compleição física apenas mediana, era um tributo à coragem e à audácia dele.
Para ilustrar os perigos que os inexperientes assumem quando tomam decisões baseadas em análises superficiais, Naldão apresentou duas histórias, intituladas A Dentadura e a Caneta de Ouro.
A primeira aconteceu nos primeiros meses que Naldão morou nas ruas e a segunda, quando ele participava de seu primeiro estágio de trabalho.

A Dentadura

Aquele dia não tinha começado bem para o menino Naldão, os motoristas mantiveram os vidros levantados por causa de uma chuva persistente e as moedas minguaram, e os parcos trocados que tinha foram tomados pelos cheiradores de cola de sapateiro.
No fim da tarde ele foi para a casa abandonada no fim da Travessa Sete para passar a noite, e lá encontrou alguns dos moradores habituais das últimas semanas.
Em um canto da sala estava um homem, conhecido por todos como Índio, e ele bufava de raiva.
- Por que o Índio está tão nervoso? Indagou Naldão a outro morador de rua.
- Está bravo porque perdeu a dentadura em uma briga hoje.
- Quebrou?
- Não, caiu da boca durante a confusão.
- Onde aconteceu isso?
- No beco do Quizumba.
O Índio era temido até pela Gangue da Cola, e para tentar conquistar a sua proteção, Naldão foi ao beco procurar a dentadura.
Ao chegar viu Quizumba, sujeito corpulento que estava com o rosto bem inchado, encostado em uma parede, com uma garrafa de cachaça nas mãos, e ao seu lado, repousava em um copo plástico, em uma água turva, uma dentadura.
Naldão, vestiu uma cara de coitado, sentou-se próximo a Quizumba, esperou escurecer por completo, surrupiou a dentadura e correu para entrega-la ao Índio.
O Índio levou a dentadura à boca, estava louco para comer uns amendoins, guardados desde a manhã daquele dia e logo em seguida, cuspiu tudo e gritou:
- O que você fez desgraçado?
Aquele mulato alto, furioso, que tinha marcas de queimaduras no rosto, era uma visão assustadora. Naldão ameaçou fugir, mas o Índio começou a se afastar brandindo a dentadura acima da cabeça enquanto gritava:
- Dentadura errada lazarento.
Então alguém perguntou:
- Aonde vai Índio?
- Trocar os dentes com o Quizumba.

A caneta de ouro

Durante as férias de seu gestor, o estagiário Naldão ficou sem atividades, e entediado passou a sondar outros empregados para aprender algo útil, mas negavam-lhe a oportunidade.
Um dia, após vagar pela empresa, retornou a sua seção e encontrou o seu chefe visivelmente irritado.
- Por que o Dr. Evandro está estressado? Indagou Naldão a um colega, famoso por apresentar respostas bem detalhadas.
- Porque perdeu a sua raríssima caneta Parker 51, fabricada em 1942, de cor “Mustard”, com a tampa folheada a ouro.
- Roubaram?
- Não, foi esquecida na sala do Aparecido, o diretor financeiro.
- E por que ele não vai lá e a pega de volta?
- Já tentou fazer isso, mas o Aparecido falou rispidamente que a caneta é dele há muitos anos, e não a devolveu.
Evandro era o Diretor de Marketing, e Naldão viu nele a possibilidade de conseguir um patrocinador para a carreira, tentaria recuperar a caneta, e com esse pensamento fixo foi à sala do Diretor Financeiro.
Ao chegar deparou-se com o Aparecido, um sujeito enérgico, e ele estava sentado defronte a uma “pilha de problemas”, e em um canto da mesa repousava reluzente a Caneta Parker 51, parcialmente oculta por um envelope pardo.
Naldão, armado de um sorriso, entregou orçamentos para aprovação e arriscou-se a fazer perguntas para distrair o Aparecido. Obteve respostas monossilábicas.
Ao sair daquela sala, Naldão levou a caneta, sorrateiramente subtraída e escondida enquanto o Aparecido falava ao telefone, e rapidamente foi entrega-la para o Evandro.
Evandro começou a assinar um importante contrato com a preciosa Caneta Parker 51 e de repente, interrompeu o ato, examinou a caneta e indagou com voz exasperada:
- O que você fez rapaz?
Naldão ensaiou uma argumentação para tentar salvar o emprego, mas percebeu que não seria necessário, pois o Evandro começou a se afastar meneando a caneta acima da cabeça enquanto falava:
- Caneta errada meu jovem, nesta está gravado A P A R E C I D O.
Então a secretária indagou.
- Aonde vai Dr. Evandro?
- Trocar as tintas com o Aparecido.
Diante de uma plateia sorridente, Naldão relembrou que a dentadura e a caneta, em decorrência às suas ações atabalhoadas, posteriormente foram recuperadas pelos seus proprietários, e que felizmente conseguiu escapar dos “cascudos” prometidos pelo Índio, sabe, aquele movimento de fechar as mãos e com os nós dos dedos golpear a cabeça do outro, mas teve que recomeçar a carreira em outra empresa.


O palestrante observou a linguagem corporal de sua plateia, satisfeito por identificar que ela estava relaxada e receptiva, então animou-se para falar sobre a ambição desmedida e a falta de bom senso, males que atingem todas as classes sociais, e o quanto eles prejudicam uma vida e uma carreira.
Contou duas novas histórias, A Toalha Escarlate e a Carta Alta Prioridade, não as protagonizou, mas dava muita importância a elas, destacava que foram pedagógicas para a sua formação.

A Toalha Escarlate

Um morador de Rua, levantou-se cedo na manhã de Natal e foi em direção à região mais rica da cidade recolher garrafas e latas vazias para vender.
O dia ensaiava nascer, ao chegar em uma praça, ele viu uma vela acesa e foi em sua direção. Deparou-se com uma linda toalha escarlate estendida sobre a grama, e em cima dela, dispostos de forma primorosa, alimentos e bebidas de aparência magnífica.
Paralisado, passou a admirar a riqueza dos detalhes da decoração, bolas natalinas coloridas, espalhadas sobre a tolha. Não acreditava na própria sorte, alguém tinha resolvido fazer uma boa ação, e ele iria se esbaldar.
Apanhou um envelope vermelho depositado em um canto da toalha, abriu-o, dentro dele, além de duas cédulas de alto valor, tinha uma carta, onde estava escrito: “Bom dia! É tempo de compartilhar. Aceite essas oferendas preparadas com muito carinho. Feliz Natal”.
Com os olhos brilhantes e a boca cheia d’água, o sem-teto lamentou não ter uma câmera fotográfica para registrar a beleza daquela cena, e enquanto se decidia se comia parte da comida ali mesmo, ou se levava tudo para outro local, percebeu, que do outro lado da toalha, tinha outra pessoa com roupas puídas, estática, com um envelope vermelho em uma mão e dois dinheiros na outra.
Dois pares de olhos se encontraram, duas bocas dispararam juntas “LARGA, É TUDO MEU, CHEGUEI PRIMEIRO”.
Nem pensaram em repartir os presentes oferecidos de uma maneira tão generosa e inusitada, e rapidamente uma confusão monumental se formou.
Vizinhos chamaram a polícia, braços fortes e mãos nervosas separaram os briguentos e os empurraram para dentro de um camburão.
Os alimentos, as bebidas e o dinheiro, tudo foi colocado dentro da toalha, que virou uma trouxa, e foi entregue para o delegado de plantão.
Um menino escondido nos arbustos também perdeu mais um Natal.

A Carta Alta Prioridade

A jovem executiva levantou-se cedo na véspera de natal e foi trabalhar, sobre a sua mesa encontrou um belo envelope vermelho vivo, marcado com a expressão “Alta Prioridade”.
Era uma proposta para duas trabalhadoras da empresa, convidadas para assumir escritórios no exterior e no trecho final da mensagem estava escrito: “Prezadas gestoras, estão disponíveis as vagas nos países A e B, o Conselho definiu que caberá às senhoras decidir conjuntamente quem ocupará cada posto. Informar as escolhas até o final do dia. Feliz Natal.
Paralisada, ela passou a admirar a riqueza dos detalhes da proposta, anos de empenho e preparação trouxeram os frutos, maturados à perfeição, os dois países a encantavam, imaginava-se feliz em qualquer um deles.
Com os olhos brilhantes e a cabeça cheia de planos observou que em uma mesa próxima a sua, uma colega de trabalho, uma rival não declarada, também trajada com roupas elegantes, estava estática, com uma carta em uma mão e um envelope vermelho na outra.
Dois pares de olhos se encontraram, telepaticamente souberam de pronto a opção uma da outra, duas bocas dispararam juntas: “O PAÍS B É MEU, ESCOLHI PRIMEIRO”.
Discutiram em português, inglês e francês, e não conseguiram se entender em nenhum idioma, a prioridade de escolha tornou-se uma grande confusão, e sem vencedora na batalha verbal, o imponderável aconteceu, as mulheres se engalfinharam.
A segurança interna foi chamada, e as contendoras foram apartadas e encaminhadas para o departamento pessoal.
Um incrédulo estagiário testemunhou duas mulheres perderem o Natal.

Quando expressava suas vivências, Naldão preferia falar em terceira pessoa, ele não era esquizofrênico e nem arrogante, utilizava esse artifício para ser irônico, compassivo e até cruel com as suas próprias ações.
E assim, o apresentador contou ao seu público mais duas histórias, O Nariz Quebrado e O Esquema Ponzi, marcantes e decisórias para o personagem sair das ruas e prosperar na hierarquia empresarial.

O Nariz Quebrado

Acuado, defronte a um adversário mais alto e uns vinte quilos mais pesado, o menino Naldão não sacou a pequena faca que trazia oculta, e nem se sentiu amedrontado pelas pessoas que formaram um círculo em volta da dupla para ver o desfecho da confusão, decidiu resolver a disputa usando a estratégia da rua, golpear de surpresa e desestimular o seu adversário.
Um gingado distraiu o opositor, e a mão ossuda chocou-se com um nariz arrebitado, o agressor conhecia os efeitos desse ato, a vista escurece, o cérebro fica confuso, o líquido viscoso que escorre pela face causa pânico, a maioria pensa em fugir, somente alguns resistem, e reagem ainda mais furiosos.
Nas ruas é necessário enfatizar a superioridade para desencorajar novos confrontos, então, um pé pequeno atingiu em cheio uma costela flutuante, a dor e a falta de ar provocaram a desistência, a luta corporal chegou ao fim.
O menino mal vestido, entregou a bola de futebol ao derrotado, não precisava fazê-lo, era uma recompensa por sua honestidade, alguns minutos antes a tinha encontrado do lado de fora do muro, e tentado devolvê-la ao dono, porém, o proprietário da casa, comovido pela atitude, o havia presenteado com a bola perdida.
O outro menino que voltava para casa, após um passeio de bicicleta pelo elegante bairro que morava, não gostou de ver a bola nas mãos de um pirralho, nem gostava muito dela, mas não bastava exigir a devolução, tinha que punir a ousadia, um nariz quebrado trouxe-lhe uma lição de humildade.

O Esquema Ponzi

Confrontado por um executivo experiente, Naldão não revelou que as suas pesquisas foram autorizadas pelo presidente da organização, também não se sentiu intimidado pelos demais membros daquela assembleia que formaram um semicírculo naquela ampla sala para tomar a decisão.
O recém promovido ao Conselho não sucumbiu à promessa de rendimento fácil, os lucros que aquele grupo de investidores oferecia era bom demais para ser real, a prudência recomendava não negociar com eles.
Estavam sendo envolvidos em uma operação fraudulenta de investimento, onde os lucros dos primeiros investidores são pagos com recursos daqueles que entram depois, e uma vez quebrada essa corrente, tudo desmorona, e conseguiu demonstrar isso com maestria naquela reunião.
Naldão conhecia as fases que seriam percorridas após revelar suas descobertas: choque, negação, irritação, culpa, vergonha, e por fim, a aceitação.
Um executivo experiente, disposto a humilhar um jovem gerente por sua imensa ousadia em colocar-se contra a vontade de um Conselho, quedou prostrado frente a um rapaz “petulante” que salvou a empresa de cair em um golpe antigo, imortalizado por Charles Ponzi, que na década de 1920 deu notoriedade ao “esquema em pirâmide”.
A frustração do executivo tornou-se maior ao ser lembrado que esse golpe é revisitado periodicamente, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos, na década de 2000, quando o financista Bernard Madoff prometeu juros mensais altos demais para os padrões americanos e gerou um prejuízo enorme aos investidores gananciosos.

Revelações

Sentimentos de perplexidade, empatia, admiração foram experimentados pela plateia ao passo que eram revelados os salvadores daquela vida lançada tão precocemente às ruas: O Índio, protetor e barreira contra as drogas; um pai assustado ao ver seu filho chegar em casa com sangue nas roupas; e um menino que perdeu uma briga de rua.
Não houve uma história de adoção; uma criança nobre, envergonhada por aceitar a devolução de uma bola de futebol, pediu ao pai para ajudar o seu adversário; um pai, tocado pelo gesto de grandeza do filho, encaminhou o menino de rua para uma Fundação e arcou com todos os estudos dele. Um dia aquele menino salvou uma fortuna.
A palestra foi concluída com a afirmação de que geralmente são os detalhes que definem os vencedores, e que é comum as nuances escaparem à percepção, e para testar a sua plateia, o palestrante perguntou:
- Alguém se lembra da fisionomia do senhor que trabalha na portaria deste prédio?
Naldão saiu do auditório acompanhado do mestre de cerimônias, e novamente um pensamento o assombrou: “quando ele vai corrigir esse septo?” Foi interrompido por uma pergunta do amigo:
- E aí campeão, podemos ir almoçar? Papai nos espera.

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Inspiração

Inspiro-me nas situações cotidianas, nas conversas ouvidas no ambiente de trabalho, nas ruas, nos transportes coletivos, nos lugares públicos, e nos personagens que cruzam nossas vidas, e as misturo com uma boa dose de ficção.
Anoto todas as frases e situações que me despertam interesse e curiosidade, e as vezes as reúno em um conto.

Sobre a obra

O protagonista de NUANCES DE DOIS MUNDOS acredita que existem semelhanças entre os problemas vivenciados no caos das ruas e os do mundo corporativo, e em seis pequenas histórias, que se fundem em uma maior, ele apresenta a sua peculiar visão.
Uma história de aventura e superação de um menino que viveu nas ruas e hoje é um sucedido executivo.

Sobre o autor

Criar personagens, criar um enredo e contar uma história é um desafio que as vezes me imponho para me motivar e de uma certa forma lidar com o estresse que a vida nos grandes centros nos impõe.
No meu caso não vejo isso como um talento nato, é custoso e exige muita pesquisa e dedicação.

Autor(a): GILSOMAR CORREA DA CUNHA ()

APCEF/PR