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A delicadeza de uma moça pura

A delicadeza de uma moça pura
Virgínia nasceu numa manhã de setembro, num parto fácil como um espirro, primeira filha da prole de dona Constância e seu Américo, que já contava na época com quatro filhos homens. A menina foi muito bem vinda e desde o princípio foi sinônimo de alegria e equilíbrio na vida da família. Dormia muito, chorava pouco e sorria para estranhos e conhecidos como serventia da casa. Cresceu sob o olhar cuidadoso dos pais e a vigilância devota dos irmãos mais velhos, que a adoravam tal qual uma pequena e inestimável joia que o destino lhes confiara. Ela os nutria com sua formosura de menina e cuidava de todos como uma mãe de mentirinha. O seu amor era uma forma de doação e acalanto que desde a infância se pronunciou como sua força maior. Assim Deus criou Virgínia.
Ao se tornar moça uma grande comoção circundou seus ares de anjo, o mundo que lhe cercava acompanhou admirado o florescer daquele corpo feminino: a delicadeza que sempre lhe foi própria se firmou no corpo torneado e curvilíneo, a cintura incrivelmente fina, os seios densos e os quadris rotundos. Olhos sedentos acompanhavam os movimentos graciosos da fêmea recém-brotada; parecia um sacrilégio incutir malícia ante uma criatura tão celestial, mas os irmãos estavam sempre alerta para frear os inúmeros pretendentes atraídos pela irmã. Homem pra ela tinha que ser escolhido a dedo, se é que havia no mundo homem à altura dela, da sua substância, da sua doçura. Melhor seria se pudessem adiar pra sempre o momento de entregar aquela alma pura a alguém que dificilmente seria digno dela.
Enquanto os egos se debatiam no seu entorno, Virgínia se mantinha impassível em sua retidão. Era o tipo de mulher que inspirava respeito, com frequência se dava ao trabalho de minimizar o físico deslumbrante com roupas contidas; o rosto de expressões suaves sempre continha um sorriso envernizado, mas nunca vazio, como se sorrir fosse parte da sua natureza íntima. Ela não buscava a atenção pra si, mas a tinha como resultado da sua beleza espontânea e serena. A moça cultivava hábitos moderados e tratava o próprio corpo como um santuário, nunca foi dada a vícios e excessos, ficando distante de tudo o que lhe parecia destrutivo.
Tinha muitas amizades fortes, com rapazes inclusive, os quais arrematava por fim como mais um irmão para lhe proteger e venerar. Ela prezava as relações fraternais e às vezes parecia que lhes eram o bastante, ficando o desejo num plano desconhecido ou desnecessário. Virgínia era prestativa com todos aqueles que estimava, procurando ajudar e aprimorar o modo operante de seus entes queridos no sentido de reverter dificuldades e alcançar objetivos. Mas sua solicitude nunca era confundida com fragilidade, pois era impossível usufruir daquela amizade generosa sem render-lhe sincera gratidão.
Alguns consideravam enjoativa a postura tão correta da moça e buscavam qualquer falha que lhe conferisse ares de um ser humano falível, outros simplesmente não podiam levar a sério tamanha pureza e esperavam que o mundo lhe mostrasse a amargura de caminhos tortos, mas em geral as pessoas a cultuavam como um exemplo a ser seguido.
Aos dezenove anos Virgínia conheceu Carlos Dourado, um bancário tão distinto que nem os irmãos enciumados encontraram argumentos para impedir-lhe o acesso à sua menina de ouro. Naquele tempo, os bancários constavam como um dos melhores partidos para um bom casamento. Carlos dedicou-lhe todo o seu romantismo e encontrou naquela moça virginal a companhia perfeita para tornar-se um príncipe honrado e virtuoso. Virgínia o acompanhou nos momentos mais difíceis da sua ascensão no banco, sempre se mostrando uma parceira leal e o pilar de toda a sua obstinação. Carlos Dourado sempre quis traçar uma grande carreira, mas depois de conhecer Virgínia, suas ambições passaram a ser apenas um meio para casar-se com ela, sustentar seus filhos com ela e dar-lhe a melhor vida que uma mulher pode ter. Casaram-se no mesmo ano em que Carlos, assumiu a gerência geral da agência.
Virgínia surgiu na porta da igreja de braços dados com pai, ostentando uma brancura de santa que só a ela era própria sem representação. Carlos sentiu o coração palpitar a cada passo daqueles pezinhos delicados a caminho do altar. Por trás do véu de tule, o rosto de Virgínia reluzia uma força etérea, alguns convidados quase se curvaram diante da passagem daquele anjo encarnado. A cerimônia foi linda, o próprio padre enalteceu a beleza da noiva e professou sobre o amor dos dois como uma prova da grandeza de Deus. Carlos e Virgínia juraram amor eterno diante de uma plateia lacrimejante e pelos bares da cidade muitos marmanjos despeitados choraram o enlace definitivo entre a preciosa Virgínia e Dourado.
A lua de mel do casal teve sabor de uma doce corrupção, desvirginar Virgínia foi sem dúvida o momento de maior êxtase na vida de Carlos Dourado. Nunca esquecera da sua primeira visão de Virgínia nua, era ainda mais linda do que ele havia imaginado. Antes de deflorar a esposa, Carlos venerou cada centímetro daquele corpo intocado. Não cansava de pensar na sua sorte: de todos os homens do mundo era ele o escolhido para amá-la e por ela ser amado. Como quem caminha por um território sagrado, o homem teve consciência de cada movimento seu e observou as reações do corpo da mulher com a devoção de um vassalo.
Logo Virgínia engravidou, tão fértil que era. Ver um filho seu crescendo na barriga daquela mulher divina foi para Carlos uma de suas maiores alegrias. Tiveram três filhas com nome de flor: Valéria, Melissa e Yasmin, lindas meninas, mas juntado as três não dava a graça da mãe. Como era de se esperar, Virgínia foi uma mãe irrepreensível e fez da maternidade a sua mais nobre função; ela já era uma grande mãe, antes mesmo de ter filhos. Nunca se interessou verdadeiramente por questões intelectuais, status, independência, poder; sua maior vocação sempre foi cuidar, acalentar e instruir. Dona de casa exigente, mantinha o lar na mais perfeita ordem e higiene, sua comida era deliciosa, as roupas da família eram sempre limpas, perfumadas e bem passadas. Carlos vivia para ela e tratava de lhe dar tudo do bom e do melhor; sua sensação ao voltar pra casa era a de que todos os seus esforços se justificavam ali, na primazia daquele lar, na honra da sua esposa, na criação das suas filhas magníficas.
A vida foi se passando, sempre com a leveza e harmonia próprias ao mundo de Virgínia. A história de amor entre ela e Carlos Dourado ganhava tons épicos ao se observar o quão raro era uma família tão unida e feliz. Suas filhas formaram-se com distinção na faculdade e se casaram com homens de bem, seguindo o melhor dos figurinos; tiveram filhos saudáveis, meninos e meninas que enchiam a casa dos avós de alegria.
O tempo permanecia gentil com a jovem senhora, que até nos seus anos mais avançados não perdera o seu frescor virginal. Virgínia morreu aos 84 anos, de leucemia, doença que se manifestou e a levou embora em questão de poucas semanas e não deixou outra interpretação a não ser de que era esse o fim previsto por Deus àquela vida tão bem tecida com as melhores fibras da dignidade. Teve tempo de se despedir de cada membro da família, sempre resignada; mesmo fraca e abatida, a mulher conseguia confortar os amigos que não sabiam lidar com a morte, falando a respeito da transitoriedade da vida e dos mistérios de Deus. Valéria, Melissa e Yasmin eram mulheres espiritualizadas, a exemplo da mãe, e mesmo sabendo que sentiriam muitas saudades da matriarca não relutaram diante da separação. Virgínia partiu num fim de tarde, deixando serenamente este mundo e a vida da família que tanto amava. As filhas, os netos, os genros, os irmãos, os amigos e principalmente Carlos Dourado choraram com imenso pesar a perda da santa mulher.
Até hoje, ao falar-se de Virgínia Dourado, vê-se nos olhos de seus testemunhos o brilho solene de quem está se referindo a um ser iluminado, untado no mais alto valor que pode ter uma mulher de carne e osso. Para aqueles que acreditam que a ausência de conflito não é digna de enredo, Virgínia aparece como um oásis narrativo, uma mulher concebida de acordo com as sagradas escrituras e transposta para a realidade sem crise e sem esforço. Ela teve a sorte de ser naturalmente bem adaptada às regras do bom viver e encontrou quem quisesse viver bem junto a ela. Assim foi a passagem de Virgínia por esse mundo: sua lembrança é uma prova de que a vida pode ser simplesmente uma doce experiência.
Amém.




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Inspiração

Todo enredo gira em torno de uma trama e essa trama carrega um conflito. Sem o problema não há história. Este conto é uma tentativa de burlar esta regra fundamental. Tem como objetivo criar uma história onde não haja conflitos.

Sobre a obra

"A delicadeza de uma moça pura" retrata um "modelo preferencial de mulher" vivendo harmonicamente do início ao fim de sua história, até mesmo quando encontra a conflito inevitável de todos nós: a morte.

Sobre o autor

Eu adoro inventar histórias ou contar fatos da minha vida de forma criativa. Tenho dois livros de contos lançados: "O autor explícito" e "À margem do oposto".

Autor(a): ALINE PEREIRA GURGEL ()

APCEF/RN