Talentos

Aguardente

A mesma voz ecoa no silêncio. O mesmo receio brinca de ciranda. As cores continuam se escondendo atrás da cortina e as nuvens ainda guardam segredos. Tudo como era antes, apenas com alguns centímetros a mais. Quem seria? Um sonhador preso em um mundo caótico? Sim. Uma criança que ainda não se deu conta dos fios brancos e finge ser forte, porém está perdida em um caminho que não consegue definir, mas é o refúgio de todos aqueles que estão insatisfeitos e não sabem como mudar.
Pode-se dizer que é um sujeito bem-sucedido. Casou-se com a mulher ideal: aquela que, para não perder a mordomia, é submissa e, antes mesmo que ele possa abrir a boca, já está concordando com tudo. Os filhos são “estudiosos” e se espelham nele, o grande e fenomenal herói. Tem um bom emprego e, devido às economias que foi juntando, mesmo se parasse de trabalhar hoje, ainda ficaria por um bom tempo com uma situação estável.

-É tudo óbvio demais.

Andança. O seu olhar perdido entre as luzes da cidade, como se a vida estivesse começando naquele momento e tudo o que encontra no caminho fosse novidade: as putas nas esquinas, as gargalhadas nos botecos, um gato entrando na lata de lixo, os meninos reunidos fumando baseado e aquele galpão convidativo com as luzes piscando rapidamente.

- Por que não? Só hoje.

O seu sorriso subliminar e apático parece ganhar um pouco de cor. Flexiona as pernas, abre os braços e deixa que uma música com uma batida mórbida o possua. A sua agonia é aliviada por um momento e a dor se cala. As suas lembranças pulsantes e dormentes ressuscitam e um grito que já estava abafado há muito tempo sente coragem de sair. A noite só está começando, mas só restam algumas horas até que se lembre de que aquele não é o seu mundo.

-Para que se lembrar? Bebe só uma dose, acredito que melhore.

Ele não sabia ao certo o que estava fazendo ali. Era como estar perdido no “País de Alice”, entre estranhos, porém com um mundo desconhecido para desbravar. A sua melancolia estava trancada no armário e apenas a loucura podia acompanhá-lo naquela noite. Não precisava mais se preocupar com o sentido das coisas. Não precisava lembrar-se de que é o pai perfeito, o marido ideal e aquele profissional responsável e dedicado. Não precisava cobrar-se tanto. Bastava sentir a música e deixar que a bebida pudesse despertar o seu estado de euforia.
Pensamentos confusos começaram a envolvê-lo e, quando se deu conta, já estava perdido na névoa das lembranças. Agora ele é o renomado Dr. Roberto Cavalcante, mas já foi o Bebeto. Um garoto que sequer imaginava como mudar o mundo, mas acreditava ter força suficiente para isso. Um garoto sonhador que queria participar de uma banda, saindo por aí sem rumo, tocando em qualquer lugar, sem se preocupar com o dia seguinte, apenas vivendo intensamente. O Bebeto jornalista, o Bebeto compositor, ou, quem sabe, o ator Bebeto. Tantos planos. Seriam somente delírios infantis?
Talvez sim. Hoje ele reconhece que a vida é um jogo, depois de tanto se decepcionar. Hoje ele sabe que todos aqueles sonhos se foram com o vento e agora ele leva uma vida “perfeitinha”, uma vida que muitos podiam desejar, mas que não o satisfaz. É sempre o mesmo vazio. Como se todos aqueles questionamentos que tanto fez na adolescência viessem à tona, deixando-o cada vez mais perdido. O fato é que o Testa, o Matheus e o Lucas, amigos do Bebeto, não são capazes de reconhecer o Dr. Roberto Cavalcante. A Silvinha, a garota de voz calma e olhar enigmático, com certeza também não o reconheceria. Nesse caso, não seria por causa do quanto mudou fisicamente, mas sim do quanto mudou o seu jeito de ser. Não que, no íntimo, todos aqueles sonhos infantis não existam, apenas estão escondidos atrás de sua máscara de concreto.
Já está quase amanhecendo. O que dirá à sua interesseira esposa? E aos seus lindos filhos que colam na escola e mostram as notas boas só para ganharem presentes? Inventar desculpas será fácil. O mais difícil mesmo vai ser aturar a ressaca. Não aquela proveniente da bebida, mas sim a ressaca de todas as frustrações que vão descendo goela abaixo, sem que perceba e, no dia seguinte, elas estão ali, mais presentes do que nunca. Gritando, mostrando os dentes, tornando-se espinhentas, ficando cada vez mais difícil engoli-las e esquecê-las, principalmente quando percebe que não tem nem o estímulo, nem a força de antes, e que sequer tentou lutar pelos seus ideais.

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Inspiração

A inspiração surge nos momentos mais inusitados e é como se estivesse envolvida por uma película mágica. Posso dizer que as pessoas são a minha maior fonte de inspiração. Quando escrevo, os personagens do teatro da vida, que vivem nas entranhas de um mundo tão emblemático, resolvem se mostrar e as palavras brotam de maneira espontânea.

Sobre a obra

A arte/obra não deve ser explicada, mas sim sentida. Cada um pode ter uma percepção diferente, de acordo com as suas vivências e emoções. Uma mesma obra pode ter múltiplas interpretações e despertar sensações diferentes em cada indivíduo. A beleza da arte está em despir-se de rótulos.

Sobre o autor

Uma eterna aprendiz.

Autor(a): ANDRESSA PACHECO BULHOES ()

APCEF/BA