Talentos

A Conversa

A Conversa

Esperar pode se tornar uma tortura, principalmente quando o tempo de espera surge inesperadamente.

— Teremos prazer em remarcar seu voo, senhor. — disse a sorridente moça da companhia aérea. Alguns fios lhe escapavam a maçaroca de cabelos engomados em gel.

— Mas o avião ainda está ali. Veja! — insisti apontando para o avião ainda parado e acoplado à ponte de passageiros.

— Uma vez fechada a porta, já era. — finalizou Cabelos Engomados. Não exatamente com essas palavras, claro, mas foi o que entendi.

Desta forma, cá estou eu, à mesa de um pequeno café no Aeroporto de Guarulhos, ouvindo uma playlist gasta e merendando um expresso com um biscoito, afinal serão apenas duas horas de espera, segundo o que dissera a amiga de Cabelos Engomados do balcão. E é nessas horas que uma companhia faz uma falta danada. Ainda que se falasse de política ou futebol, o tempo escoaria morro abaixo e logo eu estaria em minha casa. Passei então a imaginar diálogos impossíveis com as mais variadas pessoalidades. Uma cantora famosa de rock, um corredor em fim de carreira, um jovem cientista... E num estalo me ocorreu um diálogo surreal: e se o anjo da morte se viesse neste instante e se empertigasse na cadeira ao lado? Haveria tempo de aprender mais um pouco antes que me levasse ao descanso eterno?

— Oi, tem alguém aqui? — perguntou uma voz bela e misteriosa, apontando para a outra cadeira da pequena mesa.

Meneei que não com a cabeça, olhando por trás dos óculos escuros para minha nova companhia. Eu a vi mesmo piscar para mim? Eu, hein!

— Preciso matar o tempo até meu voo a Porto. — continuou a senhora dona da voz, apondo sua xícara de expresso fumegante à mesinha. Vestia-se com displicência, mas ainda guardava um charme profuso na pouca maquiagem. Gostei! — Vida corrida, muito trabalho... As pessoas não percebem que o tempo está acabando. Se matam pra viver e apenas sobrevivem.

— Verdade. E com que trabalhas? — Enfim, alguém interessante para conversar, pensei.

— Com o tempo das pessoas, justamente.

— E o que fazes aqui? — Perguntei-lhe meio rápido demais.

— Vim buscar-te!

— Como assim? — Só então notei o longo vestido negro que lhe delineava o corpo.

— Sim, é o que ouviste. E como foste bom nesta vida, deixar-te-ei escolher a causa. Coração, queda, qualquer infortúnio súbito e certeiro. Sei que infelizmente não fumas, pouco bebes, corres às seis da madrugada, que horror! Mas hoje tudo é possível neste mundo maluco. Me ajuda aí!

Minha ficha caiu num "plim!".

— Mas, ora, não tens amor nesse coração, dona...? — ouvi-me questionar.

— Mira, me chame de Mira. E coração contém sangue apenas.

Há algo que possa se dizer com força de convencimento derradeiro nessas horas?

— Talvez coração seja lugar também. Onde mais eu guardaria meus sentimentos?

— Sentimentos, emoções, tudo estado físico, querido. Ínsula cerebral e alguns hormônios, mais precisamente.

— E o que mais pode encher esse vazio chato senão meu amor por alguém?

— Isso é fome, de certo. Uma boa massa resolve.

— E essa viveza da alma quando ouço certas vozes?

— Precisarias de mais terapia. Tarde demais.

— Mas não é o amor que move o mundo?

— Não, quem o faz são os mais loucos.

— Não me convencerás! — Isso soou bravo como um rato acuado.

— Não quero convencê-lo. Há peixes que caem nas mesmas armadilhas e não se cansam. Ah, Dio, come te amo — Mira ensaiou uma voz de bruxa ao cantarolar esse trecho. — Siga em frente e chegarás a lugar algum.

— Eu já disse isso.

Mira levantou as sobrancelhas, incrédula.

— Disseste o quê, criatura?

— Eu já disse "amo-te" a ela...

— Não... não acredito! Tu não o fizeste! — ela fez uma pequena pausa que eu usei sabiamente para olhar o chão à procura de um buraco. — Fizeste mesmo?

— Fi-lo. Era o que me gritava o coração.

— Coração? Coração é carne, não sentimento, falei-te. E o que recebeste de resposta?

— Silêncio. — suspirei.

Ela gralhou uma gargalhada tão ruidosa que assustou até os pombos do Ibirapuera. Vi-os mentalmente debandarem-se para longe. Mira parou apenas um segundo antes da minha irritação aflorar.

— Mas e o que tu sabes desse assunto? Conta-me. — desafiei-lhe.

— Caro amigo, — outra pausa para enfatizar essa nova "amizade" de aeroporto — o amor é uma prisão triste. A gaiola de espera por alguém que não virá. Uma balança com um dos lados sempre cheio e o outro nem tanto. Toda utopia é bonita quando se ama, eu bem sei, mas ainda assim são utopias, sonhos que não vão chegar. Amar é só um jeito colorido da vida nos dizer "tu vais sofrer". Como numa canção do Armandinho, entendes?!

Percebi uma ponta de pesar no tom de sua voz. Ela também ama. Ou amou.

— Pois ainda prefiro amar a viver sem esse combustível. Quando se ama de verdade, todo cheiro traz lembranças, todo beijo marca, todo abraço é mar...

Mira revirou os olhos.

— Poesia de porta de banheiro, tão antiga quanto o que fazias enquanto lias isso. Bem, tenho de ir. Vá e não tornes a me ver. Não me escaparás da próxima!

— Ei, não disseste que me levarias contigo?

Devo tê-la convencido a poupar-me mais pela melancolia do assunto.

— Certamente, mas pelo visto tu já padeces por aqui, acho que podes sofrer mais um naco de vida neste mundo às avessas. — afirmou Mira, rabiscando algo em seu caderno para em seguida deslizar elegantemente rumo às escadas.

Nem olhou para trás.

Nesse instante, ouvi os autofalantes berrarem "última chamada para Vitória!".
A conversa, por fim, deu para matar o tempo.

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Inspiração

Quando um anjo impaciente e sincero demais me ajudou a literalmente matar o tempo quando perdi a conexão no Aeroporto de Guarulhos.

Sobre a obra

Algumas horas em conexão no Aeroporto de Guarulhos renderam um bom diálogo. Resolvi vir aqui cobrar essa conversa inusitada.

Sobre o autor

Sou só um artista da vida, que tenta mais acertar que errar. Uso meu tempo com minhas crias e o que mais me trouxer boas energias, como música, livros, poemas e corridas.

Autor(a): CICERO GOMES OLIVEIRA ()

APCEF/ES