Talentos

Fernando e Sofia: a vida em meio à pandemia.

Fernando e Sofia moram em um bairro agradável perto do centro de Campo Grande. Um antigo bairro de classe média que nos últimos anos vem perdendo aos poucos o seu charme. Isso se deve, principalmente, ao processo de verticalização que a cidade vive. Aos poucos os habitantes vão se mudando e as casas de moradia substituídas por escritórios, consultórios e coisas do gênero. O mesmo que ocorre em todas as cidades em crescimento. Mesmo assim, ainda mantem muitas de suas características originais: vizinhos que se falam, córregos bem conservados, praças, lugares para caminhada e exercício ao ar livre. Fernando e Sofia têm um filho de cinco anos, Diego. Os três partilham a casa com Laika, uma cadela Boxer.
A casa não é das grandes, diferente da maioria no entorno. Ficou menor ainda quando decidiram que Sofia, que é psicóloga, usaria uma parte da frente para montar o seu consultório. Fizeram duas salas pequenas, mas acolhedoras. Uma delas para a recepção, sem recepcionista, e uma segunda para o consultório propriamente dito. A presença de Sofia quase em tempo integral na casa implica em uma divisão desigual das tarefas domésticas. Fernando praticamente só come e dorme em casa.
A decoração do espaço de Sofia é minimalista. Na recepção, o essencial de um consultório. Uma poltrona, um sofá de dois lugares, um vídeo que exibe programas de surfe, concertos de jazz e outras atrações relaxantes. Tem ainda um pequeno lavabo e um filtro de água. E, claro, a reprodução de uma tela de Klimt.
No consultório uma poltrona, um divã e uma mesa com o computador. Possui ainda um jardim de inverno com cactos e outro Klimt.
A casa, que já não era grande, ficou pequena. Duas suítes, uma cozinha americana e um lavabo. Nada demais na sala com exceção de uma enorme estante. Quase todos os livros são de Fernando. Sofia trava uma luta diária em mantê-la arrumada. Em um lugar mais reservado, um computador de uso comum. O ambiente externo é o domínio de Laika. Ah, não podemos esquecer, na sala um terceiro Klimt.
Fernando é um jovem advogado que já alcançou certo sucesso. Trabalha em uma banca que divide com dois colegas de faculdade, Carlos e Rodrigo. Montaram o escritório em uma casa que pertence à família de Carlos. Especializados na Vara de Família, atendem um bom número de clientes diariamente. Com eles trabalham dois estagiários, recepcionista, secretária e Lourdinha, a copeira que, a bem da verdade, é a que cuida de todos.
Em um dia no início de março, lá pelo meio dia, Fernando chega em casa.
- Oi!
- O que está fazendo a essa hora? Aconteceu alguma coisa?
- Eu e os meninos decidimos fechar o escritório. Essa história da epidemia está se ampliando. O movimento está diminuindo e ficamos com receio de prejudicar os colegas que trabalham com a gente. Eles vêm de longe e, ainda por cima, de lotação. Decidimos trabalhar de casa. Manteremos os salários de todos, pelo menos por enquanto.
- Ah, faça-me um favor!!! Esse medo todo por causa de uma gripe!?
- Não creio que seja simples assim. De todo modo já está decidido. Trouxe uma mesa, cadeiras, computador, tudo que preciso.
- É mesmo? Decidido por quem? Posso saber?
- Veja bem, Sofia, as coisas estão se complicando. A gente se organiza por aqui e dará tudo certo.
- Eu não acredito! Vai dar tudo certo!? Só faltava essa. Isso aqui ficará uma bagunça. O que fiz para merecer isso?
- Usarei o computador para trabalhar. Se for preciso, atendo alguém no seu consultório.
- No meu consultório? E os meus pacientes? E vai atender seus clientes onde? No divã?
- Isso a gente vê depois. Combino os horários com você. Até porque seus pacientes sumirão também.
Bem, o que não tem remédio, remediado está. Assim, Sofia ficou conformada, por enquanto.
A primeira coisa a ser feita é a reorganização do espaço. Decidem mover a estante de lugar e dividir a sala com ela. Até que não fica ruim. Os livros voltados para Fernando e, para Sofia não ficar de cara para os fundos da estante, trazem o Klimt. E assim o primeiro dia termina tranquilo.
No dia seguinte, por volta das cinco horas da manhã, Sofia acorda assustada com um barulho na sala. Fernando, aboletado no micro, com um café na mão, como se nada fosse. Ah, estava de terno.
- O que você está fazendo?
- Fiquei sem sono e vim despachar algumas coisas.
- São cinco horas da manhã. Começou hoje e já trocou a noite pelo dia? Eu preciso dormir oito horas por noite. Veja se não faz barulho.
- Ok.
- Que saco! Aliás, por que o terno?
- Disseram que era bom para manter o clima de trabalho. E onde já se viu advogado sem terno?
Lá por volta das oito horas, Diego e Laika começam a correria pelo meio da sala.
- Filho, seu pai está trabalhando. Vê se brinca lá fora. Sofia, ele não vai pro colégio?
- Fernando, ele está em casa por causa da gripe, esqueceu?
- Ah, claro. Filho, seu pai está em casa, mas está trabalhando. Vê se não faz barulho, tá!?
E o pobre do menino, contrariado, leva a cadela para a área externa.
Uns dez minutos depois, Diego e Laika retornam como se nada fosse.
Fernando, já um pouco mais irritado e falando mais alto, reclama.
- Diego, já lhe falei que não é pra ficar correndo por aqui. Não vê que seu pai está trabalhando?
Agora, quem reclama é Sofia.
- O que você quer? Sai de casa todos os dias de madrugada, volta tarde da noite, não fala com o menino, chega final de semana e só faz dormir. Agora, que está em casa, quer que o menino fique o dia inteiro quieto. Faça-me o favor.
- Olha, eu só quero trabalhar. Quando puder brinco com eles. Já não sei mais se foi uma boa ideia vir trabalhar em casa.
Obviamente, cinco minutos depois, Diego já volta à brincadeira para atormentar ainda mais o pobre do Fernando que desiste e vai se exilar na área externa.
A vida em isolamento impõe uma rotina que precisa ser enfrentada com paciência e determinação. Na falta das duas, Fernando começa a tomar algumas decisões para diminuir o stress. O seu, evidentemente. A primeira, até para fazer uma média com Sofia, assume alguns afazeres da casa. Até porque não tinha outro jeito, já que deram férias para a doméstica. Passa a arrumar o lixo, fazer alguns reparos, e, o mais significativo de todos, lavar a louça.
Assume esses afazeres com gosto. Afinal, para quem estava acostumado a presenciar brigas de casais, lavar a louça, uma atividade essencialmente braçal, ajuda a relaxar. Bota uma playlist de blues no celular e parte, com toda a disposição, para a batalha.
- Fernando, o que está fazendo?
- Lavando a louça.
- Não estou falando da louça. Estou falando da música.
- Ué... o que tem?
- Você está cantando como um doido.
- Preciso cantar. Ajuda a relaxar.
- Fernando, estou atendendo uma paciente pelo skype. Não pode ficar cantando. Ela está rindo na minha cara. Que seriedade pode ter uma consulta assim?
Agora foi a vez de Sofia aderir ao autoexílio na área externa. Esta rapidamente se torna a parte mais concorrida da casa.
E assim a vida transcorre. A cada momento surge um novo motivo para o embate. As brigas vão se acirrando. Por exemplo, quando Fernando, na sua luta para reduzir o stress, teve a ideia de começar a fumar charuto.
- Fernando, que porra é essa? Esse cheiro pestilento em toda a casa.
- Não vem com essa. Este é um legítimo Griffin’s. Sempre quis fumar charuto e acho que é uma ótima hora para começar.
- Os vizinhos vão lhe denunciar por estar fumando maconha.
- Que maconha!? O cheiro é totalmente diferente.
- Será que o retardado do vizinho sabe disso?
Ou então, Fernando estando ao computador a trabalhar, Sofia decide usar o lavabo para escovar os dentes, fazendo todos os barulhos possíveis a esse simples ato e sem fechar a porta.
- Sofia, fecha essa porta, pooor favor.
- Ué... qual o problema? Estou em minha casa.
- Não se usa o lavabo à vista dos outros. Isso incomoda.
- Os incomodados que se mudem. Tenho direito de usar o lavabo da miiinha casa do jeito que quiser e não vou mudar agora.
Mais uma vez, Fernando esquece o trabalho e vai para área externa. Diego, achando que chegara a hora de brincar, surge com Laika pela gola.
- Diego, por favor, deixa seu pai sossegado.
O menino, todo triste, vai para seu quarto com Laika e, desta vez, é Sofia quem reclama.
- Diego, não traga a cachorra para dentro de casa.
E agora é o menino que ruma para seu exílio, dessa vez no corredor lateral da casa.
Não demora muito e Diego retorna para o seu quarto e se tranca. Sofia também vai para o quarto e Fernando fica no sofá da área externa.
Laika sai do lugar onde está, deita-se aos pés de Fernando, encosta e dorme.
Depois de um tempo de cafuné em Laika, Fernando volta para a sala e liga a TV. Ato contínuo de ficar mudando de canal e encontra um que passa um clip de Eric Clapton. Para, mas sem prestar muita atenção.
Diego sai do quarto à procura de Laika. Para rapidamente diante da TV e segue seu caminho.
- Diego, diz Fernando agora mais calmo, o que está fazendo filho?
- Estava jogando.
- Pode me mostrar como é esse jogo?
Vão para o quarto de Diego. Este joga, aquele assiste.
Depois de um tempo, Fernando pergunta.
- Está com fome, filho?
- Mais ou menos.
- Podemos pedir uma pizza. Que tal?
- Pode ser.
- Vamos falar com a mamãe.
- Pizza, Fernando!? Hoje ainda é segunda-feira. Bem, acho que já não faz muita diferença qual é o dia da semana. Tudo bem.
Preparam uma mesa na área externa enquanto aguardam pela entrega. Acabam por abrir uma garrafa de vinho e Fernando pergunta se pode fumar o charuto no jardim.
De cima do muro surge uma voz.
- Oi, Fernando, tudo bem? Boa noite, Sofia. Como vocês estão?
- Tudo bem, Cleber. E vocês?
- Todos bem. Vinho, charuto... vocês é que sabem como viver uma quarentena. Estamos preparando um churrasco por aqui. Vocês estão convidados.
- Obrigado, Cleber, deixa para uma próxima.
- Beleza! Precisando de alguma coisa é só chamar.
- Obrigado.
Vem a pizza e, ao final das contas, o dia termina de forma agradável.
A quarentena só começara, mas Fernando e Sofia já deram um primeiro passo para enfrentá-la, sabe lá quanto tempo vá durar. Quem sabe, podem se sair até melhor que antes.
- Posso dar uma bicada nesse charuto?
- Tem certeza? Claro.
- Hum... Bom! Tem gosto de nozes. Lembra o Natal.
FIM

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Inspiração

A pandemia impõe a todos uma mudança de vida. Nem sempre isso é fácil. Para um jovem casal, que ainda não passou por um teste assim, é ainda mais difícil. Encontram-se em uma encruzilhada que pode levar à ruptura total ou ao fortalecimento da relação. Como esse percurso se dará?

Sobre a obra

A narrativa apresenta um casal, Fernando e Sofia, que têm sua rotina completamente alterada pela pandemia. O conto parte de uma situação de conflito aberto, dando pistas sobre como superar a situação e construir uma nova relação. Para isso apresenta, de forma jocosa, situações comuns ao cotidiano.

Sobre o autor

Tenho 59 anos e vivo em Campo Grande. Nasci no Rio de Janeiro onde morei até 2015. Sou casado e tenho dois enteados. O conto é meu gênero literário favorito e o Brasil possui grandes mestres. Como o que não falta no mundo é inspiração, sem pretender ser um escritor, por vezes ouso transferir para o papel as impressões sobre as pessoas e as coisas.

Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Conceição)

APCEF/MS