Talentos

O Asfalto (crônica)

O Asfalto

E já rodava por aquela estrada há quase duas horas. Se somassem todas as vezes que a percorri, contariam mais de 1000 voltas do ponteiro maior. Naquele momento, a sensação era muito boa. Sentia liberdade, o carro seguia veloz por uma reta a perder-se de vista na linha do horizonte, rumo ao sul. O vento penetrava pela janela, batia no meu rosto e aquilo era força, era vida.

O princípio daquela viagem ficara para trás. A saída bem cedo permitia atravessar a metrópole antes de aparecerem os irritantes congestionamentos de transito que teimavam em piorar o meu humor. Em seguida a rodovia no planalto e sua neblina fria, depressiva! O trecho seguinte não era mais animador: sinuoso e traiçoeiro como as serpentes que arrepiam.

Para trás também ficou o sono de quem se levantou quando a lua ainda dominava a paisagem. A parada em posto fuleiro de beira de estrada para jogar água fira no rosto e livrar-se de liquido fabricado pelo organismo, em um banheiro digno do estabelecimento, que, surpreendentemente servia um café quente e saboroso, fundamental para completar o serviço do despertar.

Enquanto seguia veloz pela reta sem fim, pela mente passavam diversas canções, dezenas, cujos acordes e melodias eu conhecia muito mais que os passos e as curvas daquela estrada. Na maioria delas a rodovia, a viagem surgiam como metáforas ou uma simples alusão, mas valiam a pena serem recordadas. E o som do carro, mais que meu único companheiro de viagem, meu cúmplice. Era só escolher a trilha e ele tocava em frente. Podia ser um rock easy rider dos anos 60 ou um flash back dos 70, daqueles que rodavam na “Máquina do Som”(1). A quinta marcha, ao impulsionar o motor daquele auto, me dizia que também cabia “A Quinta” do gênio de Bonn, com seu tenso primeiro movimento e o quarto arrebatador. Nem todas estavam no porta cd’s, porém completamente em minha memória!

O trafego não era intenso, mas devia-se ficar muito atento. Afinal essa estrada não tinha a fama de perigosa à toa. Muitas eram as cruzes, ao longo do seu percurso, pelas quais ela carregava a culpa. Alguns infortúnios eu mesmo presenciei em outras idas e vindas por aqueles trechos. Máximo cuidado ao ultrapassar esses imensos caminhões. Concentre-se, mais um pela frente...agora não, calma, é faixa contínua! Para que tanta pressa! Já pode ir, a visão é ampla e não vem nada ao contrário. Aquilo tremulando ao longe é só a miragem no asfalto quente?

Hesito mais uma vez e não ultrapasso. Reduzo para não entrar na retaguarda da jamanta adiante. Jamanta: era o nome pelo qual, antigamente, eu chamava esses caminhões compridos. Hoje... não sei.

É o cansaço ou são truques da mente? Será que a minha visão é real ou ilusão? Estou enxergando corretamente o que está diante de mim? Estarei enlouquecendo? E se vejo a estrada livre, vou e ...powww! Bato de frente! Mais um pouco de dúvida e arrisco a ultrapassagem. Ufa! Deu certo, nada aconteceu. O caminhoneiro foi até gentil, fez sinal para eu prosseguir e reduziu. Pista limpa novamente.

Vou curtir mais umas canções até a próxima hesitação, ou melhor, a próxima jamanta. Não consigo mais relaxar! Agora me inundam a mente, as cenas de filmes de suspense em rodovias. Sinto-me encurralado! Não quero nem pensar que na próxima curva possa ter alguém pedindo carona!


(1) Slogan da Rádio Excelsior de São Paulo nos anos 1970 – “A máquina do som”.

São Paulo, 03/01/2017.

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Inspiração

São reminiscências de quando eu viajava, frequentemente, a trabalho. Nessa crônica enfoquei as sensações experimentadas sempre que dirigia meu automóvel pela "Rodovia Regis Bittencourt". Essa estrada liga São Paulo ao Sul do país e ganhou fama devido a muitos trechos perigosos. No contraponto à solidão e tensões da viagem, a música era um bálsamo.

Sobre a obra

Não tenho uma técnica específica. Meus escritos são sobre o cotidiano ou situações que vivenciei. Quando acho um tema interessante nem sempre a ideia surge completa. Anoto tópicos que podem ser abordados e palavras chaves que vou associando ao tema. Finalmente escrevo rascunho, modifico e reviso várias vezes até considerar que está pronto.

Sobre o autor

Desde a infância leio sobre temas variados, especialmente romances policiais, crônicas e contos. Comecei a escrever ainda jovem sobre meus sentimentos e angústias, como "autoanálise". Depois passei a escrever crônicas sobre o cotidiano e poesias. Em 2017 publiquei alguns textos: "Fragmentos; memórias, cotidiano, invenções e versos dispersos".

Autor(a): MARCILIO AGUIAR FILHO (Marcílio Aguiar)

APCEF/SP