Talentos

EU SOU DE HUMANAS; ELE, DE EXATAS

A superfície lisa e totalmente plana não dá a real ideia de como é profundo o olhar que se perde em ponderações sempre que ele fita o próprio reflexo. Ao mesmo tempo, nem que tivesse o dom de ler mentes poderia dizer com certeza tudo que passava em sua cabeça quando seus olhos cruzavam com aqueles olhos que o observavam com tanto afinco ali do espelho. Ainda assim, franco que era, sabia de sua dificuldade em reconhecer a extensão de seus próprios pensamentos.
O simples fato de olhar-se no espelho, por tão banal e corriqueiro, dificilmente impulsionaria qualquer um a mergulhar rumo ao centro de si.
Não.
Vivendo em um mundo cercado por imagens, com sua existência concebida no instante extratemporal em que o imediatismo ganha cada vez mais força e chega próximo à velocidade da luz, o espelho – não sendo aquele fabuloso portal através do qual as Alices e as Rainhas Más do mundo de carne e osso admiram suas belezas e disfarçam seus defeitos – não mostra nada além daquilo que os próprios olhos conseguem ver.
Ele sabe disso.
Mesmo assim, toda vez que se percebe diante de um espelho ele se permite desfazer das amarras do puramente visual. E desse universo imagético ele se desprende. As pupilas dilatam, a íris perde a cor, assume o tom pálido do humor incolor que preenche seus globos oculares. Ele olha para si mesmo, mas não se vê. Tudo o que enxerga são seus princípios, seus medos, seus desejos, suas vontades e aspirações, todos esses elementos intrínsecos a cada pessoa. Como se fosse fagulha que acende o pavio e faz explodir a dinamite, o espelho o lança em um impulso irrefreável rumo ao abstrato. Ele se olha, e começa a pensar.
Pensa sobre como o tempo passa, sobre como seu próprio rosto, hoje, está diferente de ontem. Imagina como poderá estar amanhã ou mesmo se esse amanhã, de fato, um dia lhe trará essa resposta. Fatalmente, olhando para si mesmo, ele vê refletido em seus olhos o mundo que o cerca. E se pergunta o que restará quando ele não estiver mais ali, disposto a encarar-se no espelho, quando seu tempo tiver chegado ao fim. Ficará apenas uma lembrança? Apenas o esboço desse reflexo, que o tempo tratará de apagar? Ou não restará coisa alguma?
Ele não é acostumado a olhar o mundo com outros olhos que não os seus. Talvez por isso, nesse exato instante, enquanto olha seu reflexo, ele tem um sorriso nos lábios. Pode parecer simplório por demais, quem sabe até um tanto besta, mas ele simplesmente sorri porque sente irradiar no peito a felicidade nascida na certeza de saber que alguma coisa está sendo feita da forma correta, mesmo que ele não faça ideia do que seja essa coisa nem de que se trate essa forma. Essa felicidade não precisa de explicação. Tampouco o calor que dela emana e em seu coração encontra assento. Ele se dá conta de que nem todas as sensações encontram no dicionário palavras capazes de descrever com exatidão suas conseqüências.
Por isso ele permanece ali, observando.

Observando-se. Seus movimentos. Seus gestos. A mão erguida no ar. O corpo infantil que pula de pura alegria. Ele vê sua boca soltar um grito de euforia com uma voz aguda, que não é a sua. Vê os punhos que desenham formas invisíveis no ar, traçando contornos de vitória. Ele se sente, de fato, um vitorioso. Pois sabe que naquele instante sublime, talvez pela primeira e única vez em toda a vida, ele deixou de ser um mero reflexo. Enquanto a torcida ao seu redor comemora o título, ele próprio se vê convertido em espelho.
Ali, refletida em sua frente, está a imagem perfeita, a representação mais divina de seu melhor lado. Ainda não sabe dizer se a exultante alegria compartilhada por seu reflexo é fruto de sua própria vontade ou se parte, meramente, da pueril intenção de agradá-lo. Mas nem essa falta de certeza parece desmotivá-lo, pois ele permanece em contemplação. E só o toque daquela mão de pele macia em seus dedos calejados pela vida consegue trazê-lo de volta à realidade, bem a tempo de ouvir aquela voz fina gritando a plenos pulmões um “é campeão” em sua direção.
Já era hora de voltar para casa.

* * *

Fazia muito tempo que ele vinha planejando levar o filho ao estádio. Naquela noite, mesmo diante dos protestos da esposa, para quem uma final de campeonato seria muito perigosa para uma criança tão pequena, conseguiu realizar seu intento.
Foram ao jogo. A equipe, dentro de campo, correspondeu à altura. Com um gol de falta no quarto final da partida, sagraram-se campeões. E a estréia de ambos, atuando lado a lado na arquibancada, transformou-se em empreitada de sucesso. Ele comemorou a vitória. Estava feliz, obviamente. Mas a plenitude total o atingiu verdadeiramente quando percebeu que, de alguma forma misteriosa, quem sabe por uma dessas cartadas mágicas do destino que sempre alinha os ponteiros no exato momento em que as horas cheias dão as caras, o filho se sentia ainda mais feliz do que ele próprio. Se era genuína tal felicidade ou um mero artifício para deixá-lo orgulhoso, pouco se preocupava em saber.
O importante é que haviam saído de casa apenas como pai e filho.
E agora voltavam como legítimos campeões.

Mas mesmo as glórias e os louros da vitória se transformam em ecos do cotidiano quando a rotina volta a ser a dona das ações. O estádio ficou para trás. Assim como o caminho que percorreram na volta. A sensação de vitória, essa restará ainda por muito tempo, assim como as lembranças dessa noite – eternizadas na memória.
Agora a vida voltava ao ritmo normal. Por isso, mal entraram em casa, o menino foi correndo ao encontro da mãe. Lançou-se em um abraço infinito. Começou a contar tudo o que se passou no jogo. Os lances que viu, aqueles que só ele viu, também os que ninguém mais viu – muitos desses, fruto da imaginação de quem não entende muito bem o jogo, mas se conforma em tirar suas próprias conclusões.
O jantar já estava pronto.
Há muito tempo.
Aliás, muito a contragosto, no caso da mãe. “Onde já se viu? Criança na rua até essa hora? Ainda mais de barriga vazia?”. Mas convenhamos: ela estava ladeada por campeões. Abrir uma exceção não faria mal algum. E assim ela o fez: abriu a exceção e os três se deliciaram com o banquete digno dos deuses. Ou melhor: digno dos vitoriosos.
Àquela altura, com os ponteiros do cotidiano voltando lentamente a marcar o compasso natural do dia-a-dia, todas as atenções ainda se voltavam para o menino. Ele era o rei daquele castelo. E, como mandatário, o reizinho também era obrigado a cumprir com suas obrigações para que pudesse manter a ordem e a alegria nos corações de seus súditos.
Pois que assim seja!
Depois da janta, banho e cama.
Como de costume, apenas para não fugir das amarras tradicionais dos hábitos enraizados, ao pôr o filho na cama em forma de carro, depois de alcançar-lhe a tartaruga, o cachorro, o hipopótamo, a girafa, o rinoceronte e o coala de pelúcia, o pai ligou a luminária de cabeceira, apagou a luz do quarto e se preparou para o pedido, que não tardou a chegar:
“Pai, me conta uma história?”
Como negar?
Afinal, era o pedido de um campeão mirim!
O pai, então, foi até a prateleira ao lado da porta, local onde ficavam guardados todos os livros do filho. Demorou muito tempo para escolher um deles. Não por estar em dúvida, mas simplesmente porque tinha por hábito perder-se em pensamentos e divagações durante a execução das tarefas mais banais. Por isso, não foi por maldade nem para esperar que o sono derrubasse o filho na marra que ele demorou. Apenas tomou mais tempo do que o necessário porque se deixou viajar no tempo, permitiu-se imaginar a família dali a vários anos, o pequeno já não mais pequeno, conseguindo um bom emprego, tornando-se um homem digno, cidadão consciente e ciente de seus diretos, conhecedor de seus deveres, sujeito íntegro, de boa índole, culto, com conhecimento e hábitos saudáveis, muitos deles oriundos do exemplo que os próprios pais lhe propiciaram quando, desde muito novo, sempre incentivaram-no a procurar nas páginas dos livros o contentamento que acompanha a descoberta de novos mistérios, de outros mundos, de novas formas de ver, sentir e pensar.
“Pai? Tá demorando...”
Ele, de fato, estava.
Por isso, optou por um clássico.
E com as obras de engenharia erguidas por Heitor, Prático e Cícero decidiu embalar o sono do filho.
Começou a ler o livro, apenas para dali a cinco páginas ser interrompido por aquele questionamento que, vindo de um adulto, soaria como zombeteiro, mas que na voz de uma criança assumiu um caráter tão inocente que o velho não foi sequer capaz de contestar:
“Pai, lobos não falam. Como esse lobo falou para eles abrirem a porta se ele não fala?”
A noite seguia implacável. Estava tarde. O cansaço de um dia exaustivo começava a pesar sobre suas costas de pai. Por toda essa soma de fatores, ele se absteve de procurar uma resposta convincente. E assim bem o fez, uma vez que, lá no fundo, tinha certeza absoluta de não possuir tal resposta.
Resolveu trocar o livro.
Agora eram João e Maria que viviam suas aventuras em meio à floresta escura e sombria. Se não o torpor, certamente o medo haveria de congelar os sentidos do menino, fazendo-o cair no sono.
Não haviam, ainda, chegado à metade do livro quando a dúvida cruel atingiu o pequeno:
“Mas ninguém nunca falou para eles não aceitarem doces de estranhos? Isso é perigoso!”
Sim.
De fato.
Era muito perigoso.
Assim como seria perigoso tentar argumentar àquela altura, quando os “por quês” se tornavam imensamente maiores do que os “porquês”.
A solução?
Uma última tentativa: o tiro de misericórdia veio com João, o xará agricultor, e seu pé de feijão.
Feijões saltitantes. Mágicos. Assim como a palavra que cala sentidos e envolve os espíritos puros nas brumas dos sonhos mais belos - ainda que esses sonhos possam se transformar em pesadelos frente aos olhos de pálpebras pesadas de um pai que se vê parcialmente vencido pelo agito do dia.
“Pai, aprendi na escola que o feijão é uma semente rasteira. Ele não nasce em árvore.”

Se os séculos não se tivessem sucedido uns aos outros, os minutos que se seguiram poderiam muito bem ter acontecido em épocas tão distantes quanto a Idade Média. O embate entre dois cavaleiros rivais, a vida parada no ar, com olhos fixos nos do adversário, nos segundos que antecediam o início da batalha. Um estudando o outro, sempre procurando formas de subjugá-lo. Pois assim os dois seguiram noite adentro: o pai tentando encontrar alguma história que pudesse embalar o filho no sono dos justos, o filho mostrando ao pai o quão ilógicas eram todas as histórias que o velho lhe contava.
E não houve Gato de Botas (“Quem disse que o gato usava as botas nas patas de trás? Poderia ser nas da frente”), Branca de Neve (“Também nunca falaram para ela não aceitar nada de estranhos?”), Pinóquio (“Na cidade dele não tem cupim?”) e nem Rapunzel (“Ela não gritou de dor quando ele se pendurou no cabelo dela? Isso dói!”) que dessem conta do recado.
Mas aquele pai era um vencedor. Um legítimo campeão. Idealista como tantos outros. Sonhador como muitos mais. Ele tinha em si a centelha da esperança. Aquela fagulha que não o deixava se entregar. Jamais permitiria dar-se por vencido.
Lutando contra o cansaço acumulado sobre seus ombros ao longo do dia, ele ainda conseguia encontrar a calmaria em meio à tempestade, a força que nos faz crescer frente à dificuldade. Não fosse a natureza burocrática de suas atividades cotidianas, poderia ser considerado um artista da vida. Ele era jornalista e, como todo bom profissional das áreas humanas, sabia como entrar em contato com o lado mais profundo das pessoas, entendendo seus anseios e buscando formas diferentes de lidar com suas peculiaridades.
Como num jogo sem cartas marcadas, foi num golpe de sorte que a grandeza da iluminação voltou a postar-se em sua frente. Para sua surpresa, um pensamento surgido em algum lugar desconhecido veio desanuviar sua mente. Nem bem um pensamento, na verdade.
A coisa toda estava mais para uma recordação: lembrou-se de uma conversa com um colega de trabalho, na hora do almoço. Comentava-lhe o colega sobre as curiosidades que envolvem as famílias e também sobre as características físicas e psíquicas que pulam gerações, fazendo com que os filhos se assemelhem mais aos avós do que aos pais, mesmo que destes tenham recebido toda a carga genética que lhes permite ser aquilo que, de fato, são.
Enquanto repassava a conversa ocorrida horas antes, decidiu, enfim, por fim ao embate. Ele não queria permanecer neste imbróglio por muito mais tempo. O cansaço já lhe cerceava as idéias e, com a mesma rapidez com que os minutos iam passando, a irritação crescente vinha naturalmente tomando conta de suas mundanas atitudes.

Sem nada dizer, levantou da beirada da cama e foi até a sala. Tão rápido saiu que o menino não conseguiu sequer formar uma frase inteira antes de ele voltar com o jornal do dia preso sob a axila. Seus movimentos pareciam automáticos, muito mais assemelhados aos de um robô pré-programado para executar tarefas banais do que de um ser humano, pai, jornalista e campeão, em cujas faculdades mentais reside eternamente o potencial para grandes conquistas. Parou ao lado da cama, dessa vez sem se preocupar em sentar.
Abriu o jornal na sessão de economia.
Começou a ler.
Um sorriso de escárnio contido brotou no canto de sua boca. Enquanto lia, perdia-se, também, em outra vertente de pensamentos. Ria consigo mesmo ao se dar conta de quão fortuitos podiam ser os acontecimentos da vida. Meros acasos, caso existissem. Curiosidades que passam despercebidas na maior parte do tempo. Situações com contrastes naturais que se interpolam numa corrente infinita de sucessões, sempre se reinventando, sempre trazendo cara nova aos planos de fundo já coloridos com milhares de cores difusas. Assim, entretido na tentativa de entreter o filho, viu sua imagem refletida, ampliada e polarizada nas linhas que lia. E voltou a entender-se apenas como um reflexo daquilo – daquele – que ele realmente era. Pôde observar-se como quem observa outra pessoa. Viu-se do lado de fora. Sentiu-se pronto, prestes a mergulhar para o lado de dentro, como numa história que começa lentamente, revela os aspectos mais profundos da alma, vai ganhando corpo ao longo da construção de seus parágrafos até que, perto do fim, toma o ritmo acelerado de uma narrativa pontual e sem delongas, dessas que deixam o interior em suspenso apenas por julgarem mais interessante a observação do exterior.
Novamente, sorriu.
Justo no exato instante em que o menino adormeceu, embalado por índices, cotações e tendências de mercado.
Totalmente envolvido pelo sono dos campeões.
Daqueles que não são de humanas, mas de exatas.

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Inspiração

A inspiração para este conto surgiu de observações diárias do cotidiano da relação entre pais e filhos, suas peculiaridades e excentricidades. Este conto, mais especificamente, mostra o quanto pais e filhos podem ser diferentes em seus gostos e preferências, mesmo sendo tão parecidos em essência. É um "conto família", baseado na vida real.

Sobre a obra

Uma ideia, um pouco de inspiração, um pouco de observação e o trabalho de organizar palavras em frases e parágrafos. Nada muito técnico, nada muito científico. Apenas uma história sendo contada em uma noite de sábado.

Sobre o autor

Diego - ou Ramon - é um pseudo-contador-de-histórias de final de semana, autor dos livros de contos "Prazeres", "Atemporal" e "Zumbido de Mosquito". Poeta de vez em nunca, é alguém que gosta de brincar com as palavras. Foi 3º colocado na etapa nacional do Talentos/2019, na categoria "Contos e Crônicas" e continua falando de si na terceira pessoa...

Autor(a): DIEGO RAMON VALLE VITAL (-d-i-e-g-o-v-i-t-a-l-)

APCEF/SC