Talentos

O RESGATE

- Garcia, Garcia! Tem alguém batendo na porta. Vai ver quem é – disse Sonia assustada, olhando para o relógio, que marcava cinco da manhã.

Garcia levantou preocupado. Alguém batendo na sua porta tão cedo, não seria coisa boa.

- Ana, é você? O que houve? – indagou ao ver sua colega Agente de Saúde da FUNAI, com uma expressão assustada.

- Garcia, estou chegando agora lá da tribo Juminã. Fui fazer a visita mensal para verificar a saúde dos indígenas e vi uma situação que me deixou arrasada. Lembra-se daquela indiazinha Nayane, filha do cacique Raoni, que nasceu há dois anos atrás? Ela apresentou dificuldade em andar de um tempo para cá e, por conta disso, vi os anciões da tribo reunidos para definir o que fazer com ela.

- Não acredito nisso! - exclamou Garcia com tristeza. Será que eles vão optar pelo infanticídio? Faz tempo que não vejo essa prática nas tribos que trabalho, pois todas as crianças têm nascido saudáveis. Você bem sabe que faz parte da cultura indígena o sacrifício de crianças recém-nascidas quando apresentam algum tipo de defeito físico ou enfermidade que tire sua condição física para o trabalho. Atualmente, apenas vinte etnias ainda praticam isso no Brasil. E apesar de existir lei contrária a tais práticas, ainda ocorre muito nessas tribos. É muito difícil mudar uma tradição milenar tão enraizada entre eles.

- Eu sei sim, Garcia. É por isso que vim aqui te procurar, pois eu acho que só você, que eles confiam tanto, pode tentar convencê-los a mudar de ideia.

- Meu Deus, ela é tão linda, tão meiga – disse Garcia já com lágrimas nos olhos. Vou te confessar algo que ninguém ainda sabe. Eu e Sonia estávamos até pensando em adotá-la. Você sabe que estamos fazendo tratamento para Sonia engravidar, mas até agora não surtiu efeito. E agora você vem falando isso. Vou ter que ir lá ver o que decidiram. Obrigado, Ana!

Garcia ficou visivelmente aturdido. Deu um abraço forte em Sonia e foi se arrumar para ir àL aldeia.

A tribo Juminã ficava aproximadamente a 570 km de Macapá. Era uma viagem cansativa, mas Garcia estava decidido a impedir que acontecesse algo de ruim para Nayane. Ainda mais porque ele vislumbrava a possibilidade de ser seu pai. Ele a viu nascer. Esteve presente na aldeia durante todo o seu crescimento. Acompanhou seu primeiro aprendizado da língua nativa e dos costumes indígenas. Nayane era uma criança muito dócil e ele estava muito apegado a ela. Essa ida à aldeia tinha um sentimento paterno permeando seu coração.

Durante a viagem, a imagem de Nayane estava fixa em seu pensamento. Garcia trabalhava junto às tribos de Macapá havia mais de 20 anos, e a Juminã era considerada a mais especial, justamente pelo apego que tinha a Nayane. Teria que juntar argumentos muito fortes para declinar a ideia dos anciões. Em geral, quando ocorria alguma enfermidade nas crianças com mais idade, eles optavam pela segunda forma de infanticídio, que é a inanição, prática onde a criança é abandonada em uma oca no meio da floresta, sem qualquer alimentação ou bebida, sujeitando-se ao ataque de onças ou outros animais. Garcia estava com o coração apertado só de pensar nessa possibilidade.

Chegando à aldeia, seu olhar foi furtivo em busca de Nayane. Não queria que os anciões percebessem seu intento e criassem barreiras para seus argumentos, antecipadamente.

Garcia era considerado como um irmão para todos eles. Os maiores benefícios conquistados pela tribo junto ao governo foi obtido pela luta árdua para defendê-los. Ele se tornou a voz indígena para as conquistas daquele povo ainda tão discriminado. Suas terras já demarcadas foi a maior conquista de todas, pois dificultava a tentativa de invasão por parte de fazendeiros e grileiros.

Ao vê-lo, o cacique foi ao seu encontro de braços abertos. Logo, toda a tribo juntou-se para recepcioná-lo. Ofereceram de imediato uma porção de chicha, como era o costume. Na primeira vez que Garcia provou, não gostou muito, mas com o tempo foi acostumando e depois já sentia até falta. É uma bebida fermentada à base de milho e outros cereais, a qual é servida em todas as comemorações.

Após várias conversas sobre assuntos indígenas, Garcia pediu ao cacique uma conversa em particular. Se o convencesse, já seria um grande avanço:
- Cacique Raoni, não vi a Nayane hoje. Ela não está na aldeia? - indagou.

- Tá sim. Fica na maloca agora. Vamos decidir sobre ela. Tá doente e não servirá pro trabalho quando crescer – respondeu o cacique com a testa franzida.

- Cacique, o senhor sabe que a Agente de Saúde Ana pode trazer medicações para tratar a sua doença – argumentou Garcia.

- Esses remédios não vão deixar a índia boa para as tarefas. E não se pode perder nenhum índio para ficar cuidando dela. Bem sabes que vivemos da produção, então todos tem que cooperar com sua força de trabalho. É nossa tradição. Não podemos aceitar índio com problema na cabeça ou no corpo. Vamos decidir amanhã o que faremos.

Com estas palavras simples e diretas, Garcia ficou sem argumentos. Ele sabia que a tradição era muito forte naquela tribo. Só que desta vez estava sendo aplicada justamente em Nayane, que tinha um valor imensurável para ele.

Garcia voltou arrasado. Não tinha ideia do que fazer. Ficava imaginando o que dizer para a sua esposa, a qual já havia imaginado muitas vezes como seria maravilhosa sua vida após a adoção de Nayane. Algo teria de ser feito, pensava.

Quando Garcia contou para Sonia o pensamento dos anciões, ela desabou. Ficou em prantos. Não havia como consolar o inconsolável. Mas ela não desistiu:
- Garcia, temos que fazer algo. Será que não tem mesmo nenhum jeito para essa doença?

- Segundo a Ana, é um tipo de paralisia provocada pela lesão cerebral que ocorreu durante o parto, mas que só se manifestou agora – explicou Garcia.

- Mas esse diagnóstico foi dado apenas pela Ana. Nós poderíamos procurar algum especialista no assunto.

- Sonia, lembre-se que, pela tradição deles, o cacique não vai designar um índio para ser cuidador de Nayane durante algum tratamento que porventura possa existir. Eles são muito objetivos nesses casos.

- Mas nós mesmos podemos fazer isso. Poderíamos acompanhar o seu tratamento. O que você acha?

- Eles não autorizam. É a regra. Quando os pais tentam ir de encontro à tradição, eles são expulsos da aldeia. É muito complicado, Sonia.

Sonia foi deitar, mas não foi fácil pegar no sono. Seu coração não se convencia. Tinha que achar uma solução.

No meio da madrugada, Sonia acordou Garcia:
- Acorda amor, tive um sonho com Nayane. Ela estava já crescida, sentada numa cadeira, com um sorriso lindo. Isso me deu uma ideia. Se eles optarem em deixar Nayane isolada no meio da floresta, nós mesmos poderíamos resgatá-la. Eles nem precisam saber. E mesmo que soubessem um dia, não teriam direito de reclamar nada. Afinal, eles a abandonaram.

- Hum, até que é uma ideia viável. Só teríamos que torcer para que eles optassem pela inanição com o abandono na floresta, pois do contrário não teríamos como interferir – acrescentou Garcia.

- A gente poderia pedir que a Agente Ana fosse lá na tribo e descobrisse qual a opção definida e quando fariam isso, pois se você for novamente, podem desconfiar – lembrou Sonia.

- Isso, Sonia! A Ana tem acesso livre a qualquer momento, pois cuida da saúde deles. Vamos falar com ela.

Seus olhos brilhavam. Uma centelha de esperança surgiu em meio àquela escuridão. Havia uma chance real de salvar Nayane.

Ao ouvir a intenção do casal, Ana ficou muito feliz e se colocou à disposição para colher tais informações e fazer parte do resgate. Reuniram-se a manhã inteira para definir todos os detalhes para que nada desse errado. Decidiram que, após Ana conseguir as informações necessárias e, em caso de ser inanição, Garcia iria de carro até um local afastado da aldeia e o deixaria em algum esconderijo não visível aos índios. Ele teria que caminhar pela floresta até descobrir o local onde ela seria abandonada, antes que algum animal a encontrasse. Seria uma corrida contra o tempo. Garcia teria que levar armas para se defender, alimentação, água e medicação para dar a Nayane e para si próprio. Ele estava com 46 anos de idade e não tinha preparo físico suficiente para enfrentar tamanha dificuldade, mas nem se importava com isso. Sua vantagem era que, como trabalhava com os indígenas há bastante tempo, tinha conhecimento de sobrevivência de selva que aprendeu em cursos na FUNAI, bem como na prática com os próprios índios.

Após visitar a aldeia, Ana trouxe a informação que avistara vários índios saindo em direção à floresta levando troncos e palhas. Deduziu ser para a construção da oca no meio da selva, seguindo a tradição da inanição.

Garcia calculou o tempo para construírem a oca e se programou para sair em busca de Nayane. Sonia e Ana também queriam ir, mas Garcia lembrou que ambas deveriam estar bem de saúde e preparadas para acolher e cuidar de Nayane no dia que ele voltasse. Garcia não tinha ideia do tempo que levaria até encontrá-la. Além disso, três pessoas no meio de uma floresta cheia de animais ferozes ou peçonhentos, seriam um risco muito maior. Já bastava o risco que ele próprio ia correr.

No dia previsto, Garcia saiu cedo, antes mesmo de amanhecer. Queria ter tempo suficiente para procurar a pequena Nayane. Os índios tinham o costume de sair cedo para pescar e caçar. Então ele teria que ser muito cauteloso para não os encontrar pelo caminho.

Ao chegar no local planejado para esconder seu carro, ainda estava escuro. Colocou a mochila nas costas e elevou seus olhos aos céus pedindo proteção e direção a Deus para aquela missão tão difícil. Não tinha ideia para que lado seguir, pois a Floresta Nacional do Amapá tinha uma área de aproximadamente 4.600 km2. Ele imaginava que os índios não teriam construído a oca tão longe da aldeia, ainda mais porque Nayane tinha apenas dois anos de idade e não saberia de forma alguma voltar para casa. Instintivamente ela ficaria dentro da oca para se proteger.

Garcia seguiu caminhando em direção à aldeia com sua lanterna e arma em punho. Quando calculou que faltavam cinco quilômetros para chegar à aldeia, marcou o local com golpes de facão nas árvores para distinguir os locais por onde já havia passado, e decidiu ir dando voltas ao redor da aldeia, dentro desse limite.

Os sons dentro da floresta assustam, principalmente à noite. Os grilos, macacos, corujas e a ave noturna Urutau são os responsáveis pelos sons mais marcantes. Mas Garcia já estava acostumado a tudo isso. Conhecer aquela região era um fator essencial para o êxito da busca.

Garcia não sabia, mas os índios haviam abandonado Nayane no dia anterior. Ou seja, já passavam mais de 24 horas que Nayane estava naquela floresta fria, sem água nem comida, lançada à sorte de Garcia encontrá-la. Ele caminhou a manhã inteira. Parou apenas para se hidratar e descansar um pouco. Quando iniciou a tarde, começou a esquentar. Garcia torceu para encontrar algum afluente de rio ou olho d’água para banhar-se e renovar as energias.

Quando o sol começou a se pôr, Garcia já estava exausto. Ficou em dúvida se continuava a busca durante a noite ou se voltava para casa e iniciava tudo pela manhã. Mas seu pensamento em Nayane lhe acrescentava forças a mais para continuar. Resolveu dar uma parada para se alimentar e continuar a busca por mais duas horas.

Essas duas horas a mais foram decisivas. Em meio aos sons da floresta, que vão ficando cada vez mais forte à noite, Garcia ouviu um som diferente. Parecia um choro. Fez um esforço grande para perceber qual era a direção. Na floresta, os sons se propagam em várias direções, então era extremamente difícil definir o caminho correto a seguir.

A intuição e a experiência de Garcia falaram mais alto. Ele caminhava em várias direções até perceber em qual delas o choro ficava mais forte. A emoção foi tomando conta do seu coração ao perceber que o choro aumentava a cada passo.
Já estava totalmente escuro e isso dificultava a movimentação. Garcia por vezes se feria nos galhos das árvores pela ânsia de chegar rápido ao local. Para ele, os ferimentos já nem tinham importância. A felicidade de encontrar Nayane ainda viva era muito maior que qualquer dor.

Ainda ao longe, conseguiu avistar a oca. Nayane soluçava sem parar. Garcia a pegou nos braços cuidadosamente. Percebeu que estava com várias picadas de insetos por todo o corpo. Deu-lhe água para beber e depois um pouco de leite que Sonia havia preparado.

A volta até o carro foi mais difícil ainda. Agora, além de todos os equipamentos, ele tinha um cristal precioso nos braços. Seus olhos estavam cheios de lágrimas pela emoção que estava vivendo. Acreditava que só mesmo a mão divina para o conduzir ao local exato e ainda encontrar Nayane com vida. Não tinha ideia de onde tirava tanta energia para caminhar naquela escuridão, então ficava imaginando a felicidade de Sonia ao avistá-lo chegando com Nayane.

Garcia conseguiu voltar até o carro. Agasalhou Nayane no banco traseiro e disparou pela estrada para chegar em casa o mais rápido possível.

Sonia e Ana já estavam preocupadas com a demora de Garcia. Como não havia sinal de celular na mata, a única alternativa era fazer orações e aguardar.

Já passava de meia-noite quando Garcia buzinou ao se aproximar de sua casa. Sonia saiu correndo para abrir a porta com os olhos cheios de lágrimas. Ali estavam um pai com sua futura filha nos braços. Ambos imundos de poeira e lama, mas com o coração transbordando de alegria.

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Inspiração

Quando ouvi esta história, senti tanta emoção que imediatamente pensei em escrever um conto. Foi um drama tão comovente vivido por um casal de amigos, que já pensei na possibilidade de transformá-lo em um romance, após sua apresentação no Talentos Fenae 2020.

Sobre a obra

Não foi difícil construir a narrativa. Difícil foi controlar a emoção ao imaginar o sentimento dos meus amigos, ao viver aquilo tudo. Pude narrar de forma onisciente, pois os personagens reais estavam ali, entre lágrimas, contando cada detalhe da história. Substitui seus nomes e locais por fictícios, como forma de preservar suas identidades.

Sobre o autor

Sou um amante da arte em todas as formas que ela se propõe. Participo do Talentos FENAE desde 2013 e não pretendo parar tão cedo, pois este concurso anual tem me inspirado cada vez mais a aprofundar meus conhecimentos na arte que abraço, e assim poder divulgá-la para todo o Brasil.

Autor(a): FRANCISCO ALENILSON GIRARD DA SILVA (Alê)

APCEF/PA