Talentos

Sim, aquilo estava acontecendo. Ela estava por um fio. A iminência da queda. A hora da morte. O chão balançava sob seus pés. Não havia nada seguro, nem onde se segurar. Tantas vezes imaginou o momento de encarar a morte, e o momento era aquele. As possibilidades são infinitas, mas a realidade é uma só.
O temido momento chegou. O corpo pendeu no abismo. O chão distante era um destino certo que a esperava implacável para o abraço mortal. Os últimos segundos de sua vida eram uma queda livre suspensos num grito aterrorizante.

Acordou num pulo, suada, como se o espírito tivesse caído de uma grande altura dentro do corpo. O coração batia em ritmo de desespero, a aflição reinava em cada célula. “A mente não sabe a diferença entre sonho e realidade”. O que ela julgava ser um fato era um sonho, mas o pavor era real.
Aquilo aconteceu dentro da sua cabeça, mas o seu corpo estava ali, deitado na cama, num quarto caótico, onde tudo estava onde não devia estar. Primeiro, o alívio por estar viva e consciente, não espatifada no fundo do abismo do seu mundo de sonhos, depois o desalento ao lembrar da sua realidade, naquele mundo do qual ela não podia acordar.
As latas de cerveja espalhadas pelo chão, em cima da mesa, debaixo da cadeira, no batente da janela, invocavam lembranças da bebedeira da noite anterior. Apenas se olhasse pro teto não as via. Ficou assim, imóvel, olhando com olhar vago o branco encardido acima de si, contemplando seu sentimento de decadência.
Aos poucos foi lembrando das esquisitices que escreveu no whatzap, as declarações inconvenientes, as palavras sem filtro... Quantas vezes jurou que ficaria longe do celular ao primeiro sinal de embriaguez? Ela se traía. Não cumpria os combinados que estabelecia para si, entre o eu sóbrio e o eu embriagado não havia lealdade. Levou as mãos à cabeça: Michela! Que furo homérico! Que papelão! Mulherzinha sem palavra sou eu!
Pegou o telefone sobre a cabeceira. Teve medo de lembrar todas as extravagâncias que cometera no mundo virtual e, mais do que tudo, teve medo de ver a reação de Michela diante da falta inglória na sua festa de aniversário: “Me embriaguei antes do tempo” – foi a justificativa que deu para não comparecer à festa na qual cantaria algumas músicas em homenagem à amiga.
Fez o sinal da cruz antes de abrir o aplicativo. Michela havia telefonado três vezes e enviado oito mensagens. A última, aquela que fica visível mesmo sem abrir o diálogo, dizia: “Te mato!”
Quantas sensações conflituosas para se experimentar nos primeiros momentos da manhã... Pânico, alívio, remorso, vergonha, vontade de dormir de novo e acordar noutra realidade. Pensou em quantas vezes aquela sensação se repetiu em sua vida, quanto arrependimento, quanta descompostura, quantas ausências e quantas palavras não cumpridas pelo imperativo do vício, pelo seu desejo de se transportar para outra realidade em delirante vigília, outro estado de consciência, outro lugar pra acreditar real. Aquilo precisava se converter numa grande lição, a hora do basta! “Essa foi a última vez que me embriaguei! Nunca mais vou beber!” – E proferiu o juramento tantas vezes jurado com a convicção de que agora sim, era pra valer.

O dia seguiu sofrido, ressacado, arrependido, quase insuportável... Desenvolveu naquele dia uma quase obsessão por organização e integridade, tentando compensar o sentimento de que sua vida estava toda fora de ordem e pela metade. Sobre todas as palavras que proferia pensava no quanto eram verdadeiras ou não. Ao primeiro “Bom dia, tudo bem?” que ouviu no trabalho respondeu “Tudo bem”, em seguida refletiu sobre a veracidade da sua sentença e a partir de então respondia “Tudo bom de melhorar” para a mesma pergunta. Uma urgência de dignidade a consumia, um desejo latente de se sentir honrada.
Pegou o telefone pra ver se Michela havia respondido ao áudio de cinco minutos no qual se confessava arrependida, auto sabotada e quase arruinada moralmente depois de mais aquela falta com a palavra por motivo de embriaguez. Ela não havia sequer visualizado. Nesse momento chegou uma mensagem de Juliane, agente de turismo que há algumas semanas vinha lhe mostrando as programações de passeios da agência onde trabalhava. Mostrava o folder de uma excursão ao interior do Estado que ocorreria naquele fim de semana, com destino ao Pico do Cabugi, um famoso ponto turístico. Acima do folder, havia uma mensagem sua em amarelo, da última conversa que tiveram, que dizia: “No próximo passeio eu vou!!!”
Sua nova conduta de honra à palavra encontrou uma chance de se fazer atuante. Sem sequer ler todas as informações do folder, escreveu: “Agora sim, eu vou!”

Na madrugada de domingo lá estava ela, sonolenta, à beira da estrada, esperando o ônibus da excursão que passaria por ali, rumo ao Pico do Cabugi. Juliane lhe passou uma extensa mensagem com informações e recomendações a respeito do passeio, ao que ela passou os olhos e se ateve apenas ao local e horário de partida e à orientação de vestir roupas confortáveis e calçar tênis. Estava decidida a ir, os pormenores não importavam, apenas a sua presença e o cumprimento da sua palavra.
O ônibus estava cheio de turistas despertos e entusiasmados, apesar das poucas horas da manhã. Um dos guias deu as boas-vindas e começou a falar sobre o Pico do Cabugi, um vulcão extinto, que na verdade nunca eclodiu; falou sobre as formações rochosas, o clima, a fauna e a flora da região e ressaltou a importância do lugar para a economia e turismo locais. Nas apresentações, muitos declararam que não era a primeira vez que realizavam aquela excursão, que as experiências anteriores foram tão gratificantes que se fez desejável e até necessário repetir a viagem. Algumas pessoas utilizaram as palavras “desafio”, “determinação” e “autosuperação” em suas considerações sobre o passeio, palavras essas que estavam em voga em sua nova fase de pessoa constante e verdadeira. De fato, pra ela foi um desafio não beber no sábado à noite, exigiu determinação negar as bebidas alcoólicas que correram soltas na festa de posse da nova direção do sindicato, do qual fazia parte, foi uma grande prova de autosuperação sair daquela festa sóbria e ir pra cama cedo para estar a postos no momento combinado para o passeio. Mas a princípio não entendeu o porquê daquelas pessoas estarem se referindo àquela excursão com palavras aplicáveis à sua saga de alcoólatra em recuperação.
Voltou a abrir a conversa com Juliane no celular, para ver o que de fato estava escrito nas recomendações da viagem. Ao ler atentamente o texto, estranhou a expressão “prática do montanhismo” que se repetia inúmeras vezes no decorrer da mensagem. Sim eles, iriam visitar uma montanha, chegar perto dela, quem sabe caminhar em torno da sua base, por isso era preciso roupas confortáveis e tênis...
Foi quando um dos turistas falou com todas as letras em seu discurso de apresentação: “Não vejo a hora de subir esse pico de novo, chegar lá no topo e me sentir um vitorioso!” Outro turista, interrompeu, extasiado: “Olha lá ele surgindo!!!” – Os demais bateram palmas e sacaram celulares para tirar fotos do imenso relevo que se via ao longe. Por trás da linha do horizonte a grande serra se revelava, inerte e imperiosa, com seu cume pontudo tocando as nuvens.
“Meu Deus... No que foi que eu me meti...”
Sim, a proposta do passeio era subir o Pico do Cabugi, alcançar seu topo; não era uma simples visita, e sim uma escalada – a ideia caiu como uma pedrada em sua cabeça e quanto mais eles se moviam em direção à montanha, mais ela se perguntava se não seria conveniente voltar atrás com a palavra só mais aquela vez.

Chegaram à base da serra. Tiraram fotos do grupo com a montanha ao fundo, tomaram café no alpendre de uma casa bonita. Os guias deram mais recomendações sobre a escalada e as regras que deveriam ser seguidas com muita seriedade por todos. Perto do topo da montanha havia duas letras inscritas por mãos humanas, bem grandes, de forma a se ver ao longe: JA. Alguém perguntou o que aquilo significava, porque aquelas letras estavam ali tão evidentes no alto daquele ponto turístico. O guia respondeu que eram as iniciais do nome de um político da oligarquia local. “Quanto narcisismo e falta de consciência ambiental...” Olhou para dentro da casa e avistou um freezer cheio de cervejas na cozinha. Imaginou-se por um momento ficando por lá, esperando o grupo voltar de seu dispendioso desafio enquanto ela tomava cervejas debaixo do pé de caju, mas este era um pensamento de desistência e fracasso que ela havia jurado não mais alimentar. “Não basta vir até aqui, eu vou cumprir o propósito dessa viagem”. Observou os demais integrantes daquela excursão, havia pessoas de diferentes corpos e idades. Afastou a preguiça, encarnou o módulo “Eu consigo!” e pensou que alcançar o topo daquele pico seria um marco na sua nova fase, de vitória e superação.
Começa a subida, a princípio branda, como caminhar num bosque acidentado. O fato de haver pessoas de diferentes condicionamentos físicos na excursão fazia com que de tempos e em tempos o grupo mais adiantado precisasse parar para esperar os retardatários chegarem. Intimamente agradeceu a cada senhora de idade e cada barrigudinho que havia ali, eram eles quem tornavam o ritmo do grupo mais suave e possível de acompanhar. Sentia os músculos mal treinados arderem em trechos íngremes, os pulmões preguiçosos pareciam não acompanhar as exigências do momento, mas ela ia se trabalhando, se convencendo ao esforço, ciente de que aquela era a experiência que lhe estava dada e era aquilo o que ela iria viver.
Com pouco mais de uma hora de subida um primeiro grupo arrefeceu. Disseram que já haviam chegado ao limite de suas possibilidades. Um dos guias desceu com eles e os demais continuaram. Já não havia mais vegetação, nem a sombra que vinha com ela, eram somente pedras encaixadas e uma trilha que se supunha no meio delas. O nível de dificuldade ia aumentando, mas num certo momento aquele caminho era a única coisa que existia. As crises, os medos, os arrependimentos e toda sorte de conflitos foram ficando lá embaixo, ela via apenas um passo após o outro, uma pedra onde colocar o pé, outra pedra onde apoiar a mão, em que cada movimento a tornava mais elevada e mais próxima de um nobre objetivo.
Um segundo grupo pediu pra parar e desceram com outro guia. A ideia de desistir já não passava pela sua cabeça. Ela iria até o fim. Estava bem próxima às iniciais do tal político, mas pra ela aquelas letras assumiram um novo significado: “Eu JÁ estou vivendo a vida que desejo; eu JÁ sou a pessoa que quero ser; eu JÁ estou a caminho do meu objetivo.” Aquela palavra ganhara um acento de ênfase, onde se assentava o sentido da sua presença, o seu “aqui e agora”, não o porvir, não a espera e o devaneio que até ali havia sido o seu ponto de apoio.
Com a desistência dos grupos mais lentos, os montanhistas seguiam num ritmo mais constante apesar da dificuldade crescente e agora era ela quem constantemente ficava pra trás. O grupo ia percorrendo uma trilha sutil em meio às pedras, num trajeto serpenteado, não linear, que o guia mais experiente ia indicando. Num dado momento ela estava a uma curva de distância do grupo que estava à sua frente e resolveu cortar caminho para alcançá-los mais rapidamente. Passou a escalar as pedras em linha reta e ascendente, julgando-se muito prática e esperta.
De repente, uma pedra onde apoiara a mão se desprendeu do monte e rolou ladeira abaixo, outra pedra onde seu pé se apoiou com mais força também se desprendeu daquela frágil engrenagem e desabou. Estava com os dois pés apoiados sobre uma pedra bamba, equilibrando-se num solo inseguro. As mãos tinham medo de se mover e descobrir que estavam igualmente desamparadas. Se aquele caminho fosse seguro, por que o grupo havia percorrido a extensa curva que ela evitara percorrer? Ficou ali congelada por eternos segundos. Queria gritar, mas a voz não vinha. Sentia que, se gritasse, algo se moveria levando consigo aquelas pedras abaixo. Sentiu o frio do medo. Aquela sensação era conhecida, era recorrente em sonhos, estar a uma grande altura sob ameaça de cair, era um aviso, uma premonição de como seria a sua morte, agora ela entendia. Apertou os olhos, se esforçando pra acordar, mas aquilo era real dentro e fora da sua mente.
Sim, aquilo estava acontecendo. Ela estava por um fio. A iminência da queda. A hora da morte. O chão balançava sob seus pés. Não havia nada seguro, nem onde se segurar. Tantas vezes imaginou o momento de encarar a morte, e o momento era aquele.
“Fique parada e tranquila, eu estou indo aí lhe buscar” – disse a voz de um anjo. Era Stella, uma das guias da excursão, que vinha mais atrás com outras duas pessoas. Ela veio se movendo como uma pluma ao vento naquela parede de pedras. Estendeu-lhe a mão sorrindo e conduziu de volta ao caminho seguro a ovelha desgarrada e em apuros daquele rebanho.
“Muito obrigada! Eu jurava que ia morrer... Eu quero parar.”
Os dois montanhistas acompanhados por Stella também decidiram que era hora de parar. Sentaram-se sob um arbusto, estavam ao lado das letras gravadas na montanha. Agora aquele JA tinha o sentido de “já deu, já chega!” Se ela tivesse certeza de que tudo o que ela sonhava pra si estava escrito no seu destino, ela se arriscaria daquela maneira? Certamente não. Aventuras radicais nunca foram uma inclinação sua, aventuras psicodélicas sim, mas essas ocorriam dentro da sua cabeça, seu maior campo de atuação. Andar embriagada por ruas ermas era a coisa mais perigosa que ela costumava fazer. Estar naquele momento sentada e em segurança ao lado daquele anjo com nome de cerveja era pra ela como acordar de um pesadelo. Ela já não precisava provar mais nada. Ela já não precisava chegar ao topo de um vulcão adormecido pra acordar do seu sono eterno. Ela se sentia viva como nunca, isso já bastava.
Começaram a descer a montanha, percorrendo o caminho da volta. Logo ouviram os gritos do outro grupo ao alcançar o topo da montanha. Ela não se lamentou. Já tinha encontrado o que fora buscar ali. No longo trajeto da descida, Stella vinha contandosuas aventuranças pela vida; uma mulher sábia, de grande espiritualidade, reforçou a admiração e gratidão que já havia conquistado ao estender-lhe a mão no momento do desespero paralisante.
Chegaram à casa na base da montanha, as pessoas que haviam descido antes estavam muito bem acomodadas em redes e cadeiras de balanço. Um pequeno grupo tomava cerveja debaixo do pé de caju. Apesar do cansaço, ela se sentia renovada, refeita, renascida. Mesmo sem chegar ao topo, ela encontrara o lugar da sua vitória. Aquelas letras inscritas na montanha carregavam o sentido da sua consciência. JÁ... A partir de agora e desde sempre...
Uma senhora ergueu o copo ao vê-la: “Vamos tomar uma pra comemorar essa experiência!” E ela, com um sorriso franco, respondeu:
“Já não é preciso.”

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Inspiração

Este conto é baseado numa história real que vivi ao participar uma excursão ao Pico do Cabugi, importante ponto turístico do Rio Grande do Norte

Sobre a obra

Escrevi esta obra buscando entrelaçar as sensações vividas em sonhos com a situação vivida na realidade.

Sobre o autor

Gosto muito de escrever. Penso que é a arte que mais me dá prazer. Até o momento escrevi e publiquei vários contos. Estou me preparando para escrever uma longa história. Será meu próximo desafio artistico.

Autor(a): ALINE PEREIRA GURGEL (Aline Gurgel)

APCEF/RN