Talentos

Erde

Erde não costumava alterar a velocidade em que caminhava. Isso não era necessário. Ele era grande, forte e não havia tantos predadores capazes de incomodá-lo. Ainda assim, encontrava-se cercado por pequenos animais que o rodeavam em posição de ataque. Eram muitos e relativamente rápidos, mas não havia razões para temê-los. Subitamente, Erde sentiu uma dor aguda na parte lateral do seu corpo. Girou sua enorme cabeça para ver o que havia ocorrido e percebeu que algo tinha penetrado sua carne. Em instantes, dores similares surgiram em vários outros pontos do seu corpo e, naquele momento, Erde sentiu medo daqueles pequenos animais.
***
No alto dos muros da fortaleza, os guardas apontavam suas armas a fim de inibir qualquer aproximação. A multidão estática, estava literalmente morrendo de fome e parecia esperar a misericórdia do maior e mais rico imperador de Erde. Mais e mais membros chegavam e se juntavam àquela aglomeração paralisada. De repente, um velho carrasábio reuniu suas forças e iniciou uma corrida rumo à muralha. Rapidamente ele foi ferido pelos guardas e caiu. Apesar disso, outros membros se sentiram encorajados a repetir o ato e tiveram o mesmo destino. Contudo, talvez pela eminência da morte, dezenas, centenas e depois milhares de carrasábios juntaram-se numa corrida insana até que os guardas já não tinham mais como abatê-los. Numa questão de segundos, um mar de aracnídeos cobria as muralhas.
***
Erde caminhava lentamente no seu ciclo diário. Ele era o terceiro numa linha de 9 mamutes que seguiam a mesma rotina atravessando as estações. Em Erde, e curiosamente apenas nele, surgiram criaturas que viviam em seu corpo. Eram várias espécies de pulgas, piolhos e carrapatos. As minúsculas criaturas não incomodavam o mamute. Ele era forte o suficiente para manter sua rotina sem nenhum abalo. Na verdade, Erde apresentava vitalidade e energia que normalmente não eram vistas em nenhum outro membro do seu bando. As criaturas se desenvolviam bastante e o corpo de Erde oferecia nutrientes em abundância que permitiam a proliferação desses pequenos animais. Em contrapartida, o mamute parecia também ser beneficiado como numa relação de mutualismo.
Com o tempo, os habitantes do corpo de Erde sofreram evoluções, mas nenhuma tão grande quanto os carrapatos. Dessa classe de aracnídeos, surgiu uma nova espécie que não era mais forte nem mais rápida que as demais, mas tinham uma grande capacidade de comunicação e associação coletiva. Por esses motivos, passaram a se considerar superiores às demais espécies e se autodenominaram “carrasábios” — a espécie civilizada que se destacava em meio aos selvagens.
Devido à sua eficiente organização, os carrasábios conseguiram criar armas e meios para melhorar a vida da espécie e, em consequência, causaram a piora na vida dos demais seres daquele mundo. Como não havia predadores da espécie, logo a população passou a crescer bastante. Os carrasábios, além da dieta de sangue retirado de Erde, passaram a se alimentar de pulgas e piolhos. Estes últimos foram domesticados e forçados a se reproduzirem para alimentarem o número crescente de carrasábios.
As partes do corpo das pulgas eram muito valorizadas no mercado de Erde. Contudo, as pulgas não aceitaram a domesticação e muitas vezes atacaram e feriram carrasábios. Demonstrando sua superioridade, os aracnídeos evoluídos organizaram caçadas e mataram tantas pulgas que esta espécie de inseto foi extinta de Erde.
A força de trabalho dos carrapatos e piolhos passou a ser utilizada para melhorar a vida dos seus dominadores. Formaram-se grupos que guerreavam entres si na disputa por territórios no corpo do mamute. Com isso, surgiram vários impérios que lutavam pelo domínio total de Erde, como se o corpo do animal pudesse pertencê-los.
A desigualdade entre os membros da espécie crescia exponencialmente. Muitos carrasábios passaram a ter acesso a muitas opções de alimento e conforto, enquanto outros eram fadados a trabalhar exaustivamente para o próprio sustento.
A pressão sanguínea e principalmente a queima de pelos e pele de Erde tornaram-se fontes de energia para os carrasábios. Assim, surgiram novas formas de produção e trabalho. Apesar dissos, essas mudanças não proporcionaram uma melhoria na igualdade entre os carrasábios, mas apenas o aumento da população que ficava cada vez maior.
Mais membros carrasábios significava a necessidade de mais membros das outras espécies para suprir a demanda por alimento e trabalho. Havia bilhões de animais consumindo sangue e retirando pelos, pele e carne do imenso animal. Com a intensa exploração do corpo do mamute, este começou a apresentar problemas de saúde.
Um grupo de estudiosos constatou um superaquecimento em Erde que poderia colocar a vida de todos os carrasábios em risco. Eles defendiam que era preciso uma urgente mudança no comportamento de todos ou o mamute não resistiria. Apesar das evidências, muitos duvidaram dos estudos. Alguns territórios, por questões econômicas, negaram-se a reduzir a exploração. Naquele momento, o superaquecimento era visto por muitos apenas como uma preocupação de cientistas com um futuro distante. Alimentando uma ilusão de recursos infinitos, a grande maioria dos carrasábios não mudou seus hábitos de consumo.
Erde passou a apresentar sérios problemas de saúde. As feridas abertas causaram diversas infecções. Os carrasábios perceberam que as previsões catastróficas eram reais. Devido a uma forte anemia, o sangue do mamute já não tinha os nutrientes necessários para sustentar os habitantes do seu corpo. A população de Erde começou a morrer por desnutrição. Os sábios carrapatos finalmente perceberam que a exploração havia chegado ao seu limite. Não havia possibilidade de Erde sustentar todos aqueles consumidores de sangue.
Vários dos impérios de Erde possuíam grandes armazenamentos de sangue. Imediatamente os nobres se trancaram em suas fortalezas. A decisão dos governantes foi simples: se nem todos poderiam sobreviver, este benefício deveria ser concedido aos mais sábios entre os sábios. Aos mais educados e puros membros de Erde que dariam continuidade à espécie até que o mamute se recuperasse ou que encontrassem uma solução. A morte dos demais seria um preço justo a se pagar. Afinal, estes em geral eram apenas mão-de-obra fácil de conseguir.
Com a grave situação de Erde, uma enorme quantidade de carrasábios se viram condenados à morte. Uma multidão faminta vagava numa ingênua e desesperada busca por sangue saudável. Um grande grupo parou diante da fortaleza do maior imperador daquele mundo. Os portões estavam trancados e os guardas apontavam suas armas para inibir qualquer aproximação.
Na fortaleza, a guarda havia recebido a simples ordem de trancar os portões e abater qualquer um que se aproximasse. As reservas de sangue estavam mais valiosas do que nunca e precisavam ser protegidas para o bem da espécie. A aglomeração de carrasábios estava estática em frente à entrada, talvez esperando por um milagre.
Os guardas do imperador se surpreenderam com a ingenuidade do velho que correu para a morte. Até se divertiram acertando um a um os pobres famintos que tentavam se aproximar da fortaleza. Mas quando uma onda de carrasábios enfurecidos se aproximou do muro, a maioria dos soldados abaixou as armas e aceitou o destino, pois não havia nada que pudessem fazer. Como estavam em um número absurdamente maior, a multidão engoliu facilmente os defensores. Partiram rumo à grande mansão, destruíram as portas e se espalharam pelos cômodos. Dentro de pouco tempo, a cabeça do imperador surgiu nos jardins da fortaleza.
Cenas similares ocorreram em vários cantos de Erde. Centenas de palácios, usinas, fábricas e construções foram destruídas. A civilização se esfacelava e estava retornando ao seu estado de selvageria. Como selvagens, as chances de sobrevivência da espécie eram maiores.
Os sobreviventes consumiram os estoques de sangue enquanto Erde se recuperava. Não havia mais fazendas de piolhos nem construções desnecessárias. A estupidez da exploração sem controle havia ficado no passado. Em virtude disso, a febre de Erde aos poucos foi reduzindo. Milagrosamente seu corpo conseguia se recuperar dos danos, as feridas estavam sendo curadas e a pelagem se renovando.
***
Erde caminhava com a confiança de quem venceu um grande desafio. A pretensiosa superioridade de uma espécie que surgiu em seu corpo quase o matou, mas felizmente estava recuperado e poderia seguir seu ciclo natural. Ainda era um mamute jovem e teria alguns bons anos pela frente. O gigante estava isolado do seu bando e se divertia quando os demais animais abriam passagem ao avistá-lo. Ele gostava do respeito que o seu tamanho impunha. De repente, percebeu que pequenos animais o cercavam.
***
Um grupo de caçadores se aproximava sorrateiramente do alvo. Era um animal enorme, maior do qualquer um que eles já haviam visto. Eles se espalharam para organizar o ataque. Mais de perto, ele parecia ainda mais imponente com suas presas grossas e curvadas. Ao avistar os caçadores, o bicho não pareceu se importar e seguiu sua lenta caminhada como se nada tivesse visto. Alguém atirou a primeira flecha que cravou em cheio na lateral do corpo volumoso. O gigante pareceu não ter se abalado com o golpe, mas parou de andar. Aos gritos, todos atacaram rapidamente e cravaram suas lanças e flechas na carne do bicho. Após tantos ataques bem sucedidos, ouviram um bramido assustador do mamute.
***
Quando a vida dos animais em Erde estava novamente estabilizada e o sangue estava saudável e disponível para todos, subitamente as espécies perceberam um abalo no seu mundo. Erde desabou abruptamente e causou a destruição de várias construções e morte de milhares de animais. Enormes vazamentos de sangue inundaram a pele e os pelos do animal. Vários carrasábios correram desesperadamente fugindo das ondas vermelhas. Os que conseguiram escapar para os pontos mais altos, viram que o sangue de Erde havia perdido a pressão e estava esfriando. O único animal onde havia carrasábios encontrou seu fim. Erde, como todos os outros mamutes da Terra, foi exterminado. A espécie homo sapiens estava demonstrando sua superioridade.

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Inspiração

A forma como os seres humanos vêm prejudicando o planeta.

Sobre a obra

Tentei criar uma narrativa com algumas cenas fora da ordem natural.

Sobre o autor

Alguém que gosta de arte e de aprender sempre.

Autor(a): EMERSON DE SOUZA ALBUQUERQUE (Emerson Albuquerque)

APCEF/DF