Talentos

AMOARA

Em tempos de pandemia, onde estamos aprendendo a valorizar mais as pessoas, a natureza, a solidariedade e até o ar que respiramos, volvo meus olhos para o passado, pisando na mesmas trilhas de nossos ancestrais, mergulhando na atmosfera histórica de nosso Brasil.

Conto aqui a historia de uma cabocla loura de olhos azuis, de nome fictício Amoara.
Peço autorização para enxertar alguns dados históricos, pesquisados na internet, para ajudar a situar os fatos, e a alteração de outros pois há fatos incompletos.

Amoara nasceu em MG, onde aprendeu de tudo um pouco, com seus pais, agricultores que iam de fazenda em fazenda, acabando por se instalarem no ES.
Hoje , com mais de setenta anos, guarda a força de uma guerreira e um caráter irretocável, forjado ao longo de toda a sua vida.

Retornaremos no tempo, para que compreendamos, não só a vida dela, mas a real situação do nosso povo tão sofrido com a grande desigualdade social, exploração de mão de obra e a fragilidade do ser humano perante os detentores de poder, mas sem jamais abandonar a luta.
Cenário I – vida pós migração do ES

Século XIX, Meia Pataca- Minas Gerais, vivem descendentes de bandeirantes, imigrantes que trouxeram mentalidades obtusas, mazelas de todos os tipos, acrescidos de soberba perante a cultura dos povos originários e de uma ganancia sem limite.

Neste período, era extremamente comum, a caça aos índios nativos. Eram trazidos no laço, para servir na lavoura, na mineração, nas casas, e nas camas de seus donos.

Muitos indígenas sucumbiram às doenças, às agruras da mineração, à fome. Mas uma pequena minoria fugia para as matas, embrenhando-se em densa floresta, tentando encontrar aldeias afins.

Cenário II – chegada ao Porto e migração para MG


Nas cercanias do Espirito Santo, muitos desembarques eram tentativas desesperadas de ter uma vida promissora, em um mundo novo, cheio de belezas, riquezas e desafios.
Abraçados as suas bruacas, um casal de tez clara, cabelos alourados, não aparentado grandes posses e cercado por uma penca de filhos, sai do porto. Sem nada conhecerem, os migrantes são orientados a se alojarem em um pequeno albergue empoeirado, situado em um vilarejo não muito prospero, mas onde poderiam repousar, forrar o estomago, antes de buscar trabalho;
O trato com as mulheres e crianças não era nada agradável, considerados inferiores. Rudes ao ponto de esbofetear em qualquer “possível desvio de conduta”.

As dificuldades e decepções locais forçaram a escolha de novos rumos: colocaram seus parcos pertences em uma carroça de bois, com alguns farnéis, cobertas e água – a viagem seria longa e difícil. A sorte os abençoou, pois havia um grupo grande que iam se aventurar pelas estradas.

Povo estranho, em volta das fogueiras improvisadas, para consumo de alimento, contadores de histórias, falavam do heroísmo na travessia dos oceanos, contavam vantagens, como caças abatidas, mulheres seduzidas e índios!
Assunto predileto: a caça de índios valentes, que gostavam de arrancar cabeças e as punha a fumegar. Comiam carne humana e as vísceras eram cruas, para que a energia do guerreiro fosse absorvida por eles.
As extenuantes lutas de brancos e índios preenchiam as noites, durante o percurso, olhos cheios de sangue, enquanto rasgavam com os dentes, alguma carne. Histórias enxertadas de fantasias, que só terminavam quando as bruxuleantes chamas se apagavam.
Cenário III – Eis a chegada ao cenário I

A chegada a Meia Pataca não causou alarido, era costumeira a chegada de migrantes sedentos de trabalho.
Todos estavam extenuados. Famintos e fedorentos.
Cansaço, suor e fome.
O casal encontrou uma espécie de pensão; suja, mal aspecto, mas a única que tinha . Lá se hospedavam vários viajantes, os quais, se acotovelavam à mesa, para sorver uma sopa rala com pão.

O repouso era necessário para repor energias, pois precisavam encontrar uma casa para morar e algum trabalho para a subsistência da família.
Se propuseram a procurar uma casa para morarem nos dias seguintes.
Uma pequena casa logo foi encontrada. Era precária e ficava próximo ao rio que cortava a vila ao meio. Da janela, onde puseram uma cortina tosca, via-se a mata densa, assustadora quando a noite caía.
Cenário IV – o inicio da vida e primeiros dramas

Arrumações foram feitas pela mulher e a filha mais velha, enquanto o homem “foi ter” com outros homens para tentarem trabalho. Fácil: mão de obra barata – que tristeza!

Após um pobre desjejum, resumido a umas pequenas broas e um pouco de leite, o casal ia para a lavoura, deixando a primogênita cuidando da casa e das crianças.
Uma brisa convidativa acoitava a cortina, a mocinha sonhava, não queria estar ali. Saiu para estender umas roupas e seus cabelos , mal presos, esvoaçavam , lindos.
Ela cantarolava uma melodia ininteligível, mas cheia de significados, já que a melodia a reportava para terra natal.

Distração em terra de ninguém é desaconselhável. Olhos estranhos a observavam; logo foi arrebatada por um índio , encantado pelo Sol que refletia em seus cabelos, fugindo mata a dentro, deixando a família em total desespero.

Cenário V – a hipocrisia, a supremacia branca

Encontrar o meliante era questão de honra...na verdade, para a maioria – honra, que nada! – queriam alguma novidade que os tirasse daquela rotina entediante.
Quando já haviam perdido a esperança, os encontraram em uma choupana, mas a moça já estava com ventre proeminente e seios fartos, sinais de uma prenhez adiantada. Sem ter muito o que fazer, tentaram “branquear” o bugre, dando-lhe roupas e sapatos apertados e um nome português que mal sabia pronunciar. Catequese imposta, lavoura goela adentro era seu hoje e seu futuro.
O bugre não se adaptava, fugia rotineiramente para a mata, sem ter sucesso, sendo castigado com açoites, tão logo recuperado.
Foi nesta atmosfera hostil que o caboclinho parido cresceu e aprendeu a ser homem, macho e viril – Francisco, de sangue cataguás.

Cenário VI – escravidão, pilhagem e subjugação

Em outra comarca, a vida também não era nada fácil. Lutas, pilhagem, doenças, escravidão.
Os que se achavam “donos da lei” cometiam barbáries sem punição. Divertiam-se com muita bebida e mulheres.
Era fácil laçar uma índios, sendo mulher, deitar-se com ela sem nenhum pudor.
Uma outra história formada; uma linda índia, perfumosa como a floresta, foi laçada. Uma cena nada romântica. A caçada foi cruel, onde foi trazida à fazenda, exibida como um troféu, mas sem nunca abaixar a cabeça.
A bugre aprendia fácil, mas nunca abandonou seus saberes, veio a conhecer Francisco e casou-se com o caboclinho e tiveram muitos filhos.


Cenario VII – pausa para casamento em tempos difíceis.

A filha da bugre logo se transforma em moça, conhece um negro mateiro e se casa com ele. Tempos estranhos e terras estranhas, união era negócio, nada de amor – acordos feitos, casamento consentido –
Temporais, lutas, alegrias, filhos perdidos, filhos criados. O ciclo que jamais pára. Que ara, semeia e colhe.
Homens são herdeiros benvindos, mulheres, casos à parte, tinham seus maridos escolhidos: seria alguém com braços fortes, trabalhador e com terras. Terra é ouro.
Graças a Deus, a mãe de Amoara traçou o seu destino. Era excelente parteira e o pai, um negro mateiro de grande experiência.

Cenário VII – o nascimento
Viviam de lavoura em lavoura, no Vale do Café, para colheita ou aragem de terras.
Ela teve outros filhos, e mesmo gravida de Amoara, madrugava nas lavouras, para ajudar no sustento da casa.
No nascimento da menina, a colheita não podia esperar. Levava a criança enrolada e a punha a sua vista.
Os olhinhos azuis aprenderam com o céu, com as plantas e com a terra. Não havia muito tempo para choro. Esta é a vida de lavrador. Cólica? Uma ervinha fervida coada em um pano.
Criança da terra é assim, descalça, comendo frutos do pé, ajudando no roçado.
Cenário VIII – o aprendizado

Não havia banheiro, este era na própria mata. Em casa? Ajudava na preparação de iguarias. Medo de queimadura: jamais! De cobra peçonhenta? Nem pensar.
Aprendeu a manejar a enxada e a foice, desde cedo. Afinal, o plantio não espera. Um trabalho árduo, passado de pai para filho, sem que se servisse à mesa, um naco de esperança, uma vida melhor.
Amoara nunca reclamou, aprendeu a manejar o facão e a pistola. A roça possui perigos que o homem urbano desconhece.
Há o animal bicho e o animal homem, que fica à espreita para subjugar a mulher, onde os gritos não chegam a lugar algum.
Aos nove já carregava sacos de café, onde iam cada vez mais, colocando mais volume.
Era muito pesado, seus ossos e músculos moldados ao peso de dezenas / centenas de sacas jogadas “ao lombo”.
As mãos maltratadas e feridas pelo corte da cana (que também tinha que fazer).
Haviam os afazeres domésticos e peregrinação nas casas de mulheres, para auxiliar nos partos que a mãe cansou fazer.
Foi forjada uma mulher guerreira, que não se assustava com os gritos das parturientes ,com o sangue jorrado ou com um feto não vingado.
Calmamente, auxiliava e levava todos aqueles lençóis coalhados, à beira do rio, esfregando, quarando para o próximo parto.
Olhava indiferente, o sangue que seguia rumo abaixo. Faz parte da vida. Era a própria vida, seguindo seu destino.
Cenário XIX – aprendizado e assédio
A menina se fez moça. Uma vida sem muitas promessas. Noiva abandonada. Mulher cobiçada. Mulher de roça sem marido.
Trabalhando para grileiros, coronéis, o perigo batendo a porta. Um convite indecente para uma mulher decente.
Não havia escolha, sua mãe falou: Vai te embora para não ter derramamento de sangue.

E a moça, com o coração ardendo, prepara uma sacola com poucas roupas e vai.
Lagrimas descem, tinhas um destino, mas como manter-se lá? A estrada passando rápido, lágrimas rápidas como o seu coração.
O horizonte capixaba ia sumindo, pensamentos confusos e enlouquecedores.
Estava só. Esta solidão foi arregimentando seu espírito e sua carne.
Cenário X - recomeçando
Destino: RJ. Foi trabalhando em que podia, já que mal sabia escrever. Doméstica era o mais oportuno. Na sua humildade e pobreza, seguiu em frente.
As tristezas borbulhavam. Sozinha. Muitos boatos humilhantes em família, falavam que se prostituíra. A verdade estava com a sua mãe e ela.
Forjada também, na oração. Aprendeu coisas novas, encantou-se com a cidade e casou.
Cenario XI – sendo feliz
Cuida do marido, das filhas, dos patrões e da família de seus empregadores.
O dom do cuidado. O dom do despojamento. O dom que Deus lhe deu.
Cuida dos filhos de outrem como se seus, fossem. Da água, como se fosse um cristal e da Bíblia, como se fosse livro Único.
Hoje, quando adormece na sesta da tarde, por causa do cansaço, cochila feliz, pelas filhas casadas e netas alegres.
Sonha com a sua realidade hoje: folguedos com as crianças, como se criança fosse. Tudo é amor, tudo é energia.
Uma força motriz que se iniciou embaixo de um cafezal. Ouvindo os tambores ancestrais, sentindo a energia da natureza e se re” conciliando com o sagrado do viver.
A mãe sábia de Amoara , ao deixar a filha “avoar” pra fora de seu ninho, fortaleceu as suas asas.
Indo para a casa dos 75, tem a garra de uma amazona e um coração de criança.

Amoara! Amora! Coração valente
De Cabocla Feliz
Quem te vê sorridente,
Nao acredita no que diz.

Nas coversas trancadas,
Sabemos o que passamos
E certeza sempre teremos
Das vitorias alcançadas

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Inspiração

historia de uma amiga

Sobre a obra

Tive que refazer diversas vezes, por lacunas na contação da historia e fazer pesquisa da historia da opoca da escravidão e do cafe

Sobre o autor

Desenho, fotografo, esculpo, mas a escrita tem sido minha companheira., Um diálogo interno e externo.

Autor(a): LAYSE PEREIRA DA FONSECA (PAMELLA)

APCEF/RJ