Talentos

Homo não sapiens

A humanidade passara milênios sem questionar sua soberania no reino animal. Embora se soubesse que os homens eram fruto da evolução de uma espécie de macacos, nunca se especulou que um dia poderiam outros animais evoluir. Foram eras de exploração, foram séculos tratando os animais como objetos, como propriedade e como alimento. Ninguém poderia imaginar que durante todo esse tempo algumas espécies haviam, sim, evoluído.
Tudo começou muito lentamente. Primeiro notou-se que os gatos haviam criado um dialeto próprio, que ia além do miado. Foram vários relatos de flagrantes de felinos conversando, embora ninguém fosse capaz de traduzir o que falavam. Todos achavam engraçado e vários vídeos das conversas viralizaram na internet. Ninguém suspeitou, afinal gatos sempre foram tidos como uma espécie inteligente.
Depois foram algumas raças de cachorros que começaram a andar sobre duas patas. Novamente, nenhuma desconfiança, apenas mais e mais vídeos virais. De fato, era engraçado, pois obviamente o equilíbrio eventualmente lhes faltava, assim como ocorre com bebês nos primeiros passos, proporcionando momentos de comicidade.
As galinhas aprenderam a cavar e esconder seus ovos, um a um, muito fundo, de modo que o esconderijo só era descoberto quando dele já saía um pintinho. As vacas não permitiam mais a ordenha. Quando o homem se aproximava, elas simplesmente abaixavam-se, ficando com a barriga rente ao chão, tornando a tarefa impossível.
Apesar de todos os sinais, os homens continuavam crendo que retomariam seu domínio. Não lhes passava à cabeça que um dia sua hegemonia poderia ser ameaçada. Eles sempre tinham explicações (desculpas) que justificavam o comportamento dos bichinhos como se fossem ocorrências pontuais e como se tudo estivesse dentro da normalidade.
Até que as mudanças começaram a ocorrer mais rapidamente. Várias pessoas relataram ter tido suas casas invadidas e houve relatos até mesmo de famílias inteiras expulsas de seus lares, que agora eram ocupados por matilhas. As cidades foram tomadas por espécies selvagens e não era raro ver animais ao volante de carros. Os homens, definitivamente, haviam perdido o controle.
Mas os animais não tinham interesse de instaurar uma ditadura, embora tivessem, então, condições. Havia, é claro, algumas espécies mais revoltadas, como os pássaros de gaiola. Eles não conseguiam entender o que levava pessoas a encarcerá-los. De fato, não havia como explicar. Eles tinham qualquer sede de vingança. Gostariam que seus antigos tutores passassem ao menos um dia presos, mas foram dissuadidos pelos demais, afinal, os animais estavam em caminho de evolução e repetir comportamentos humanos definitivamente fugiria a isso.
Todos seriam livres, mas quanto aos homens algumas regras seriam necessárias. Foram abolidas armas de fogos e automóveis, pois concluiu-se que sempre tinham sido utilizados de forma predatória. Os homens também estavam banidos de cargos políticos e de chefia, pois sempre haviam sido um desastre nessas áreas. Perderam também o direito ao voto, afinal, poderia servir como motivo para conluio (e tal direito também nunca tinha sido bem aproveitado).
Ao longo dos anos, os animais tinham aprendido todas as técnicas de plantio, portanto, não haveria mais caça nem consumo de carne. Todos passariam a ser veganos. O leite das vacas serviria somente como alimento para seus filhotes, assim como o das cabras. Em pouco tempo, a expectativa de vida de todas as espécies, inclusive do homo sapiens, aumentou cerca de 50%. Aconteceu, inclusive, de espécies consideradas extintas voltarem a existir.
A verdade é que os próprios homens tiveram de se render e admitir que suas vidas melhoraram muito . É evidente que no início houve muita resistência às mudanças. Muitos custaram a aceitar a perda do comando. O curioso é que a humanidade nunca se questionou o porquê de ter julgado tal domínio como certo e óbvio por tanto tempo. O que fez os homens crerem ser melhores que os animais a ponto de sacrificá-los? A sapiência era insuficiente para justificar tantas crueldades perpetradas ao longo do tempo. Esse argumento seria inclusive contraditório, já que a sapiência supostamente dotava o homem de discernimento, o que não parecia ter havido na sua relação pregressa com os animais. A humanidade, que julgava ter conquistado tantos louros, que se orgulhava de suas construções megalomaníacas, agora se via tendo descobrir seu real papel no universo, coisas que os demais animais já estavam carecas de saber.

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Inspiração

A ideia é bastante simples, baseia-se naquilo em que acredito é que creio deveria ser uma postura a repensar por todos.

Sobre a obra

Uma vez que começo a escrever, as ideias fluem quase que naturalmente. Posteriormente reviso e faço algumas correções.

Sobre o autor

Sempre gostei de ler e escrever e felizmente sempre tive facilidade para assimilar as regras gramaticais. Leitura é uma paixão que acaba me inspirando a tentar também algumas criações.

Autor(a): JULIANA DE OLIVEIRA RIBEIRO (Juliana Ribeiro )

APCEF/RS