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A GUERRA DO SOLDADO MIRO

A GUERRA DO SOLDADO MIRO

- ATACAR! - Bradava o tenente Valdomiro relatando suas aventuras vividas na Segunda Guerra Mundial. De pé, à luz da fogueira acesa no lajedo em frente à casa de Dona Celestina, dirigia-se a umas dez pessoas, inclusive eu, que rodeavam o fogo para escutar a narrativa da tomada do Monte Castelo, na Itália. O homem era pura empolgação.
Eu já ouvira suas histórias várias vezes e me arrepiava como se fosse a primeira. O corpanzil chamava a atenção de todos, com bochechas avermelhadas, além do enigmático brilho no olho esquerdo, ornamentado por uma enorme cicatriz que ia quase até a orelha, compunham a imagem fascinante daquele herói de guerra. Costumava usar em ocasiões solenes ou até em velórios como este em que estávamos, uma velha túnica do exército. É bem verdade que já estava bem surrada, com punhos, colarinho e cotovelos puídos.
O tenente surgira há uns anos atrás vindo sabe-se lá de onde, para tratar do inventário de uma tia, moradora antiga do lugar. A centenária titia deixara-lhe um velho casarão do século passado, que queria vender e voltar para o lugar de origem.
O crepitar da fogueira imitava o matraquear das metralhadoras nas casamatas, cuspindo fogo nos pracinhas brasileiros, que serpenteavam correndo morro acima, em mais uma investida para alcançar as posições inimigas, conforme a narrativa que o Valdomiro eufórico continuava. Tal entusiasmo devia-se a mais uma rodada da garrafa de pinga que circulava de mão em mão. Pulavam minha vez, único adolescente na roda de pessoas que foram ao velório de Dona Celestina, conhecida professora da região.
Na escola da falecida, duas salas separavam os mais velhos, seus alunos, dos mais novos, alunos de Dona Noca. Os métodos de ensino eram bem peculiares, como as sabatinas das sextas que versavam sobre português e matemática, seguindo uma antiga cartilha e uma tabuada mais antiga ainda. O método pedagógico utilizado nestas sabatinas era o da famigerada palmatória de madeira, também conhecida como bolachão.
- Tenente Valdomiro!
-Sim, capitão?
-Pegue seus ¨paraíbas¨ e rastejem pelos flancos do morro até as casamatas e trincheiras inimigas. Levem suas ¨peixeiras¨ e peguem eles à unha. Precisamos calar aquelas matracas ou morreremos todos subindo em campo aberto!
Tamanho era o entusiasmo do tenente continuando a história, que quase tropeçou e meteu o pé na fogueira. Porém, efeito pior que a chamuscada que acabara de dar no velho coturno, foi o comentário a seguir:
- Oxente! E podia levar facas pra guerra, era?
Nunca tinha visto tamanha indignação do meu herói diante da interrupção do Zé Perneta. Pensei que o homem ia ter um colapso. O brilho fuzilante no olho esquerdo, aquele da cicatriz, foi maior que o do fogo. O rosto vermelho ficou mais escarlate ainda. Não sei se tamanha cólera foi pela interrupção ou pelo fato do coitado do Zé, visivelmente arrependido e assustado, ter questionado de forma tão incisiva a veracidade da narrativa.
- Claro que não, seu estúpido! O pelotão tinha o cabo Severino que era mecânico e especialista em peças de ferro. Ele pegava os para-lamas das carcaças dos jipes bombardeados para fazer as lâminas das facas e o ¨baquelite¨ da direção para tornear e cravar os cabos.
- Ah! Assim, sim. Desculpou-se, bajulando, o Perneta.
A velha e pesada Celestina havia falecido no início da tarde daquela quinta-feira, após se empanturrar com um pirão de osso buco, muito gorduroso.
- Tomou banho frio depois de comer pirão quente. Aí deu no que deu! Onde já se viu? – dizia a sábia vizinha, recepcionando todos que chegavam ao velório, explicando o motivo do falecimento. – Chega tá roxa! – Concluía.
A notícia chegara à escola com os alunos já em sala de aula.
- Eita sorte arretada! A velha morreu na quinta. Só vai ter aula segunda. Não teremos sabatina amanhã, por causa do enterro – comemorou Zé Galego, pulando alegre.
- Vamos caçar passarinhos amanhã lá pros lados da cachoeira das índias? Com sorte vemos algumas tomando banho – sugeriu Birinha, já programando o que fazer no feriado.
A casa de Negro Zuca era próxima do centro, na mesma rua de D. Celestina. Ele acendera uma fogueira, que ainda ardia, para clarear a rua e ver os passantes naquele dia.
A nossa fogueira deu sinal de fome de lenha. Por isso ¨Seu Oscar¨ mandou que ¨Bactera¨, um doidinho que chegara num circo e por cá ficara, fosse catar madeira no seu sítio à frente.
A reza seguia animada ao redor do caixão com o corpo da defunta no centro da sala. Meu tio preferiu ficar consolando Dona Noca, aproveitando o escuro do alpendre ao lado da sala. As velas já davam sinal que não durariam até o alvorecer, acentuando mais o escuro e facilitando a ação do titio com a inconsolável Noca.
Eu era o sobrinho mais velho do solteirão, que ainda morava com meus avós. Já que meu pai não viria ao velório porque viajaria pela madrugada, pediu ao cunhado para trazer-me.
- Além da viagem que não posso adiar, sei que o tenente metido a besta estará por lá, com suas histórias e gabolices. Não gosto dele e não sei porque você o endeusa tanto. Percebi, como de outras vezes, um certo ciúme na forma como meu velho referia-se ao militar. Será porque não conseguira servir ao exército durante a guerra? Fora dispensado por morar em zona agrícola. Nem mesmo meu padrinho que era oficial dera conta de alistá-lo.
Enquanto eu estava absorto nestes pensamentos, o sanguinário Valdomiro já tinha esfolado uns seis chucrutes numa das trincheiras para onde rastejara. A metade do seus comandados fizera o mesmo. Os demais ficaram pelo caminho, estirados nas mais grotescas posições, compondo o cenário aterrador, descrito com entusiasmo pelo nosso historiador. Sua ação sanguinária por fim foi interrompida. Na investida à segunda trincheira tombou ferido no rosto por uma baioneta.
- Mesmo ferido, quando o cabra largou o fuzil e puxou a Luger, entrei em luta corporal, tomei a pistola e dei-lhe um tiro na testa! Ainda bem que era o último branquelo daquela trincheira, a segunda que eu consegui chegar. – E assim dizendo, olhava para os à sua direita e os à sua esquerda, balançando a cabeça, esperando a reação da plateia. A maioria não se conteve e aplaudiu calorosamente. Acho que ouvi até um assovio, para desespero do representante do clero, o sacristão Abraão da Beata Creuza, filho de pai não sabido, também conhecido como Fio do Padre.
Bactéria surgiu da escuridão abraçado com um monte de madeira, dirigindo-se à fogueira. Já prestes a lançar o feixe no fogo, o resto de luz deixou ver os paus bem recortados e roliços que o doido tão rapidamente trouxera.
- Os fueiros do meu carro de bois não, fio da peste! - Oscar levantou-se num pulo, como se estivesse sentado em uma grande mola. Correu até o doido a tempo de evitar o prejuízo, arrancando os paus de suas mãos com brutalidade.
O doido Bactéria não dera a mínima para os impropérios de Oscar, que fora, ele mesmo, atrás de lenha. Baixinho e franzino, provavelmente por desnutrição de vida inteira, não se sentia ofendido com nada. Sem conhecimento da história, atreveu-se a perguntar ao avantajado tenente, pois não ouvira o desenrolar da conversa:
- E aí, ¨ganhamo¨?
Pela primeira vez vi o Valdomiro ser condescendente. Mesmo assim, espetou:
- Claro, idiota! Graças à minha ação! Dei condição ao resto da tropa para conquistar o objetivo. Foi bom porque fui socorrido e estou contando a história.
Tio Nenê se aproximava com a professora. Pensei que resolvera levar-me para casa.
- Senhores, boa noite. Vou com a Senhorita Noca pegar velas no armarinho de Felícia. Mesmo com hora avançada, mandou recado que atenderia, se preciso. Não deem cachaça ao meu sobrinho. Já voltamos.
Daí sumiram na escuridão ladeira abaixo. Só os vi novamente ao passarem à luz do que restava do fogo de Nego Zuca. Deu para ver a saia rodada e engomada da Noca. Apesar de não ser jovem, era uma morena bonita, olhos negros e coxas grossas. A voz de meu herói trouxe-me à realidade.
- Acordei no hospital após dias em coma. Pensei que estava no céu pois tinha um anjo ao meu lado. Uma loura, olhos azuis, com um branco do sorriso como o de seu uniforme. Soube que não saíra do meu lado desde que cheguei. Frida tinha muitos atributos – continuava o Mirinho, como dizia que ela o chamava. Seu olho tinha um brilho diferente agora. Um brilho apaixonado que só eu, à sua esquerda, enxergava.
- Frida!? E era alemã? Você não tava na Itália? – Meteu-se mais uma vez, para meu desespero, o já embriagado Zé Perneta. Pronto! Agora vão às tapas - pensei. Ainda bem que alguns estavam em condições de segurar o tenente, quase rasgando sua velha túnica. Claro que a essas alturas os impropérios viriam, para bagunçar o velório. Algumas das beatas corriam a espiar pelas janelas.
- Seu miserável! Vou mandar prendê-lo por desacato! Estais a duvidar de mim? Deus quando marca um desgraçado deste é para não perde-lo de vista! – Gritava o oficial, referindo-se à perna que faltava no Zé.
- Gente! Calma! Respeitemos a defunta! – abriu a boca, enfim, Nadinho de Terezinha.
- Não se diz defunta. De cujas, já que é do sexo feminino – corrigiu o até então calado doutor Artuzinho, filho do Capitão Artur. – Por falar nisso, qual foi mesmo a causa mortis?
- De cujus, se homem – continuou, mostrando seus conhecimentos do latim, adquiridos em seu curso de advocacia. O malandro era tratado como doutor desde que fora estudar na capital. Na verdade ficou por lá pouco mais de um ano estudando, ou melhor, farreando com as putas e nas jogatinas. Tão brilhante carreira foi interrompida porque quase levou o pai à falência.
Diante de tantos apelos e pedidos de desculpas, o ¨major¨ tomou mais um gole, esculhambando de vez a sequência da rodada da cachaça e lascou a explicação:
- Minha amada Frida era judia e fugiu da Alemanha, escapando do Holocausto. Voluntariamente servia nos serviços médicos aliados. Era louca por mim e eu por ela. Tive que voltar ao Brasil, devido ao ferimento, mas jurei que voltaria para buscá-la, tão logo a guerra acabasse.
- Mas o que diabo é Holo...
O peste incorrigível ia de novo interferir na narrativa. Agora teríamos dois enterros! Não sei o que deu em mim naquela hora, mas tomei uma decisão rápida e acho que evitei o trágico desfecho.
- Lá vem tio Nenê com as velas! – Desviei a atenção para o pé da ladeira, antes que o Zé concluísse a pergunta. Tio vinha passando com Noca em frente às brasas da fogueira de Zuca. Vi que tirou o chapéu e bateu nas calças, tirando a poeira, enquanto ela ajeitava o cós da saia, não sei por que.
Com minha intervenção passaram a falar da vida alheia e a contar piadas, deixando Zé Perneta a salvo. Percebi quando Noca e meu tio chegaram e entraram para renovar as velas, quase apagando nos castiçais. Reparei então que a parte detrás, da antes engomada saia, estava com um enorme franzido, também não sei por que diachos!
- Vamos, filho? – Aproximou-se meu tio pouco depois. E dirigindo-se a todos: - Boa noite. A Noquinha precisa recolher-se. Foi um dia difícil e vai dar alguns cochilos para voltar para o enterro às nove. Já que tenho que levar meu sobrinho em casa, vou acompanhá-la – Nunca tinha ouvido ele chama-la assim. Desceu a ladeira como Senhorita Noca e subiu “Noquinha”!
Descemos a rua. Enfim em casa, joguei-me na cama com roupa e tudo. Pareceu que acabara de fechar os olhos e ouvi minha mãe: - Levanta-te ou vais perder um dia da vida! O enterro já passou e o Biriba veio chamar-te para caçar. Tá te esperando na casa de Zé Galego. Faz teu asseio enquanto frito um ovo e o cuscuz já tá na mesa.
Confesso que fiquei um pouco triste por ter perdido o enterro da minha professora, que sempre me tratara bem. Celestina foi pro céu!
Agora D. Noca trabalharia os dois turnos para dar conta das duas turmas. O bom é que ganharia em dobro, o que deixou meu tio mais animado para assumir o relacionamento. Vovô aproveitou e resolveu dar uma mãozinha e empurrou-lhe do ninho. Deu-lhe um bom dinheiro para comprar o casarão centenário.
O fato é que depois de tanto tempo o herdeiro conseguiu desfazer-se da casa, agora do meu tio. A transferência do imóvel no cartório foi a última aparição do meu ídolo.
Achei que nunca iria saber porque Valdomiro não foi atrás de Frida. Até que um dia ...
Cheguei em casa e encontrei meu pai felicíssimo, balançando um papel na mão. Acabara de receber um telegrama de padrinho Wanderley, trazido por Seu Jonas do Correio.
- Meu compadre amigo PT dei baixa exercito PT passo amanha de viagem PT prepare buchada PT abraço Wanderley PT – as pessoas da época decifravam com facilidade a forma como os telegramas eram escritos, onde PT significa ¨ponto¨.
Começou daí a correria lá em casa. O prato preferido do ilustre visitante, que dera-se ao luxo de escolher o cardápio, carecia de um dia de antecedência para o preparo.
No dia seguinte ocorreu tudo dentro do esperado. Na varanda a conversa rolava solta e animada entre os convidados, regada a cana de cabeça para abrir o apetite, enquanto o cheiro da buchada chegava da cozinha de onde vinha um caldinho de mocotó, de vez em quando.
- Teu pai disse que queres ser militar como eu e que tua escolha pela carreira no exército foi influenciada por mim e por um ex combatente que morou aqui – falou-me padrinho.
- Senhores? Vamos entrar pois a mesa está servida!
Todos à mesa. Almoço rolando. As conversas concentraram-se no convidado principal e meu pai.
- Wanderley?
- Pois não, compadre!
- Por acaso não serviu um tal Tenente Valdomiro em suas tropas? – Perguntou papai, mudando a conversa e deixando o meu futuro de lado.
- Não, não. No quartel tinha um Valdomiro mas era soldado raso e servia na cozinha. Exímio com uma faca ao sangrar e esquartejar um bode. Vivia a me agradar com um filezinho para ganhar uma folga em finais de semana.
- Acho que é coincidência de nome. Esse que morou aqui até brigou na batalha de Monte Castelo – disse meu pai.
- Esse soldado, assim como eu, não saiu do Brasil. Em algumas ocasiões pegou dois ou três dias de cadeia por arruaça nos bordéis do cais do porto. Até que um dia ele exagerou. Era louco por uma rapariga galega chamada Gringa. E mesmo sabendo que era mulher de cabaré, encontrou-a no colo de um marinheiro, botou o cara pra correr, pois tinha um corpo avantajado. Quis dar-lhe uns tapas e ela, uma puta vivida e experta, pegou uma garrafa da mesa e meteu na cara dele, ferindo-o do olho esquerdo até a orelha.
- O soldado Miro, como o conhecíamos, perdeu o olho esquerdo – continuou meu padrinho - mas o exército patrocinou um de vidro e providenciou sua baixa das fileiras. Eu, ao despedir-me dele e dos seus majestosos filés, o presenteei com uma túnica de gala, que guardara de lembrança, ainda com as insígnias do tempo que fui tenente.
Papai olhou pra mim, balançou a cabeça duas vezes, vagarosamente, com um sorriso enigmático nos lábios.










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Inspiração

RETRATAR COSTUMES DE MORADORES DE CIDADEZINHA DO INTERIOR NA DÉCAA PÓS SEGUNDA GUERRA.

Sobre a obra

DESCRIÇÃO EM PRIMEIRA PESSOA DE COSTUMES POPULARES

Sobre o autor

APOSENTADO CAIXA

Autor(a): FILADELFO DA ROCHA NETO (ROCHINHA)

APCEF/SE