Talentos

MENTIRAS SANTAS

Garcia trabalhou na Funai do estado Amapá desde os 24 anos de idade. Hoje, com 84 anos, ele se diverte contando suas histórias de alegrias e dificuldades vividas durante os anos dedicados à defesa dos indígenas da tribo Juminã, a qual ficava, aproximadamente, a 570 km de Macapá.

Uma delas conta que nos anos 70 a Funai ainda estava iniciando a sua formação, e os recursos oriundos do governo federal eram bastante escassos para dar conta de todas as necessidades daquele povo.

Na época, o único carro de que dispunham para dar conta de todas as tarefas, era uma picape F-100 da Ford que, por ser necessário percorrer longas distâncias todos os dias, ficava com seus pneus carecas rapidamente. E cadê dinheiro para comprar novos?

Por amor à causa, cada vez que Garcia ia passar pela barreira da Polícia Federal, já preparava antecipadamente uma desculpa esfarrapada para pedir liberação aos policiais. Ele já havia usado a morte da sua mãe e seu pai como desculpa, umas quatro vezes. Os policiais já conheciam de cor e salteado todas elas e sempre o advertiam: “Poxa, Seu Funai, na próxima vez vamos apreender seu carro. Esses pneus estão sem condições de uso”.

Garcia sabia que estava na mira dos policiais. Porém, como o trabalho precisava continuar, ele teve a ideia de procurar desvios ao longo da estrada, passando com o carro pelo meio da mata, evitando utilizar a BR onde a barreira estava instalada. E assim, Garcia foi convivendo por bastante tempo com os pneus carecas, colocando em risco a sua vida e a dos índios.

Certa vez, ele estava atrasado para levar um cacique bem idoso ao porto, pois o velho índio precisava ir à Belém tratar de assuntos de interesse da aldeia e, como era um dia de domingo, resolveram trafegar pela própria BR, passando pela barreira da Polícia Federal, pois ganhariam bastante tempo. Garcia considerou que os dias de domingo geralmente são calmos naquelas estradas e os policiais relaxariam na fiscalização e raramente fariam blitz.

Entretanto, por uma desdita sem precedente, os policiais resolveram quebrar os padrões dos domingos e instalaram uma blitz justamente no horário que Garcia estava passando.

Quando Garcia entrou na curva que dava acesso à barreira e percebeu a blitz, ficou desesperado. Lembrou que não havia planejado nenhuma desculpa para aquela ocasião. O coração estava quase saindo pela boca. Se a polícia apreendesse o carro, o cacique ia perder a viagem.

Enquanto o carro ia se aproximando da barreira, a cabeça de Garcia estava quase fundindo, tentando fabricar uma nova desculpa.
Quando os policiais avistaram Garcia, já vieram com “unhas e dentes” para abordá-lo e ouvir a sua justificativa do dia:
- Ora, ora, e não é que o Seu Funai resolveu dar uma passadinha por aqui hoje! Já estávamos com saudades. E aí, conta pra gente qual a história de hoje – falou o policial entre risos.

Garcia desceu do carro e com a cara mais cínica do mundo, explicou:
- Que é isso, policial? Não pense isso de mim. Eu não usaria o carro nessas condições se não fosse por um motivo nobre.

- E que motivo seria esse, Seu Funai? – indagou o policial com um olhar descrente.

- Esse índio que estou levando no carro, é um pajé curandeiro. Ele está indo visitar um índio muito doente que está à beira da morte. É só ele que tem as rezas, chás e ervas para salvar a vida do índio moribundo. E você sabe como são essas coisas de indígena: Se você for responsável pela morte de um índio, sua alma ficará atormentada pelo resto da vida.

O policial foi arregalando os olhos e ficando nervoso. Garcia realmente era um mestre em criar desculpas. E quando percebeu que o policial já estava suando de preocupação, tratou de incrementar mais ainda:
- Seu policial, foi só por isso que vim com esses pneus carecas, pois não queria minha alma atormentada por causa da morte do índio. Mas o senhor é que decide. Se quiser apreender o carro, fique à vontade.

O policial, já muito preocupado, estava quase cedendo aos argumentos de Garcia, quando teve uma ideia:
- É o seguinte, Seu Funai: Eu vou liberar o carro, mas antes quero ouvir do próprio pajé a confirmação da sua história.

Pronto, agora tudo iria por água abaixo. O índio falava bem pouco a língua portuguesa e não sabia qual desculpa o Garcia havia inventado desta vez. Garcia ficou rezando para todos os santos que conhecia, pedindo que não deixasse o índio, inocentemente, revelar a sua farsa.

Calmamente, o policial se dirigiu ao carro, abriu a porta e indagou ao índio:
- Bom dia! Tu é pajé?
- Bom dia! Tu é pajé. – respondeu o índio meio assustado.
- Tem doente lá?
- Tem doente lá.
- Tu vai curar?
- Tu vai curar.

O policial já estava quase convencido com as respostas seguras do índio, mas resolveu fazer mais uma pergunta, para assegurar que não ia ter tormentas na sua alma, caso o índio viesse a óbito:
- O índio não vai morrer?
- O índio não vai morrer. – afirmou com convicção.

O policial respirou aliviado e disse ao Garcia:
- Vai, vai logo. Leva esse pajé urgente e não deixa o índio morrer, por favor.

Garcia entrou no carro e saiu em disparada. Não conseguia parar de rir da forma inusitada como conseguiu se safar de mais essa abordagem policial.

Na verdade, o índio não respondeu nenhuma pergunta feita pelo policial. Ele apenas repetiu as mesmas frases, pois além de saber bem pouco o português, os índios mais velhos têm o costume de repetir as falas das pessoas quando não entendem o seu significado.

Garcia se deu bem mais esta vez, porém esta lição ficou marcada para ele. Procurou não utilizar mais o carro naquelas condições e passou a exigir com mais veemência o apoio do governo federal na manutenção do trabalho da Funai. Aos 84 anos de idade, lembra que sua dedicação foi decisiva na vida de centenas de índios que tiveram as suas terras e vidas tão exploradas pelos “homens brancos”, com raríssimas exceções.

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Inspiração

Esta é uma história verídica que ocorreu com um grande amigo meu, quando trabalhou na Funai. Gostei demais e a transformei em um conto.

Sobre a obra

Conto a história como um narrador onisciente intruso, visto conhecer os personagens com bastante intimidade.

Sobre o autor

Sempre escrevi desde a adolescência e o Talentos Fenae me ajudou a desenvolver ainda mais esse prazer da escrita.

Autor(a): FRANCISCO ALENILSON GIRARD DA SILVA (ALÊ)

APCEF/PA