Talentos

MENTIRAS E FUXICOS

Era uma cidadezinha pacata onde o balançar das árvores frondosas amenizava o calor das tardes e refrescava as noites enluaradas. Os moradores costumavam reunir-se em cafés, bares pacatos, saraus, teatros, para conversar e comentar a as estórias criadas pelo Sr. M e difundidas pela Sra. F. Repetiam isso à exaustão até ficar incrustado no imaginário popular.
Não é de se admirar que dentre as personalidades mais ilustres da cidade destacava-se o Sr. M; figura imaterial de espírito inventivo cujas ideias amoldavam-se à conveniência perceptiva do expectador e do transmissor. Quem o via não conseguia evitar a expressão
– O Sr. M tem as pernas curtas!
Sua cabeça era enorme, coisa que muitos atribuíam à incessante atividade de criar, ampliar, omitir, alterar a realidade ou a fantasia. Seus braços eram tão longos que ultrapassavam os limites da cidade, se assim o desejasse, com dedos rígidos que apontavam para todas as direções, parecendo diversas varas mágicas com defeito, pois para onde apontava atraía a desgraça. Mas o Sr. M, embora sempre presente, era figura que quase não se via, na maioria das vezes se escondia. Contudo, todos o procuravam em algum momento da vida, principalmente quando se encontravam em dificuldade ou para vencer uma batalha, mas, também, por motivos por vezes considerados nobres.
A Sra. F era uma das esposas do Sr. M, a mais antiga por sinal, era uma senhora gorda cujo corpo ocupava toda a cidade, sua voz agradável e hábil tornava verossímeis e palatáveis as estórias do Sr. M, e mais, tinha imenso prazer neste ofício, gostava de reunir o máximo de pessoas para escutá-la e observar como cada um repetia sua estória com um toque pessoal sempre acrescentando detalhes sórdidos ou engraçados, para aumentar o prazer de contar. Apesar da Sra. F contar as estórias criadas pelo Sr. M, aquela nunca revelava sua fonte. Por isso ninguém sabia como o Sr. M construía estas estórias, se a partir de um determinado episódio ou se fruto apenas da imaginação. Mesmo aqueles que, às vezes, descobriam com o Sr. M inventara a estória achavam tão bonita, tão conveniente e tão mais fácil de propagar que não valia a pena destruí-la apenas para esclarecer uma besteira que não tinha muita importância, pra ele, é claro.
Para escutar a Sra. F as pessoas se reuniam e se socializavam. Eram tardes quentes com o calor atenuado pela brisa e noites calmas iluminada pelo luar, onde a atenção era sugada pelo desfile de estórias contadas pela Sra. F. Ela tinha um modo gosto de contar sua versão sempre descendo a detalhes para poupar nossa percepção enquanto aguçava nossa imaginação deixando nas entrelinhas algum tipo de sugestão.
Muitos conhecidos eram personagens constantes destes contos, de pessoas simples até homens importantes ninguém escapava das estórias mirabolantes que superam em muito a vida morna dos viventes. Eram tão intensas e interessantes que as pessoas repetiam por impulso sem nenhum filtro crítico.
Essas estórias tinham regras imutáveis que nunca podiam ser desrespeitadas. Dentre elas uma era a mais importante: os personagens das estórias não poderiam escutá-la diretamente nem conhecer sua origem. Era mais ou menos assim: quem repetia a estória não participava dela, e vice-versa, quem era personagem da estória sequer a escutava da boca da Sra. F. Mas ninguém se importava com isso já que você só sabia da estória alheia, desde que os atores não lhes fossem próximos, é bom lembrar.
Essas estórias eram interessantes e obedeciam uma lógica própria que ativava sempre nossa curiosidade, enquanto misturava fantasia e realidade, mas que mal havia nisso se o causo era agradável. Às vezes a fantasia tinha mais lógica que a realidade e isso é que era importante. Ninguém nunca questionou essa distorção afinal era mais fácil escutar a Sra. F que explicações sem graça.
Mas um dia a cidade cresceu e evoluiu, trazendo a tecnologia e o progresso, e o Sr M tornou-se bígamo. Este trouxe também para o seu lar a Sra. T para ajudar na divulgação de suas estórias. No início todos ficaram consternados, mas logo acostumaram com a novidade.
A chegada da Sra. T trouxe mais estórias contadas com mais eficiência e habilidade. A Sra. T ia de casa em casa para contar as estórias levando comodismo, mas não permitia interrupções e os encontros tornaram-se mais frios, apesar de mais eficientes.
Sra. T sentava na sua sala contava a estória e depois partia sem a menor cerimônia, isso praticamente acabou com os encontros nos entre os habitantes, sendo os encontros reservados à família que se reunia na sala para escutar a Sra. T. Calados, é claro.
Outra mudança muito importante que aconteceu com a chegada da Sra. T foi a quebra de uma regra básica: agora todos podiam escutar todas as estórias, mas nem todos entendiam quem eram os personagens, porque esses personagens se tornaram grupos, facilitando a alienação e a condução.
Alguns habitantes, mais poderosos, passaram a auxiliar o Sr. M e começaram a usar a Sra. T para vender suas ideias porque sentiram nela uma pessoa muito mais habilidosa que a Sra. F e com muito mais recursos para convencer. Além disso, na época da Sra. F reinava sozinha, era possível questionar e às vezes isso podia revelar alguma contradição. Agora não, na era da Sra. T, as pessoas só escutavam e viam até a quantidade que ela permitia, além disso, ela era capaz de repetir a mesma estória a qualquer hora, sem mudar uma vírgula, o que dava mais credibilidade.
Mas a cidade continuou crescendo e evoluindo. Foi quando o Sr. M tonou-se polígamo e casou-se também com a Sra. I, mais nova que as outras duas, a Sra. I mostrou-se mais habilidosa, mais rápida e com maior mobilidade.
A Sra. I chegou para abafar. Conseguiu atingir todas as faixas etárias dos mais novos aos mais velhos. E ainda deu a impressão que as pessoas podiam questionar como se podia fazer com a Sra. F e manipular as estórias, como foi proibido com a Sra. T. Outra vantagem que nem precisava ir à sala, do quarto mesmo poder-se-ia participar de tudo e se tivesse que sair isso não impedia que continuasse, a Sra. I acompanhava.
A Sra. I tornou-se mais importante que as pessoas da cidade. Ela substituiu as ruas, as casas, as salas, mostrou que mesmo estando ao lado do amigo as pessoas preferiam se falar através da Sra. I, pois muitos a consideravam mais confiável que a voz.
A Sra. I superou a todos e a tudo, conquistou jovem, criança, velho e adultos. Até o Sr. M repartiu sua criatividade entre a população e hoje todos vivem feliz sem saber o que é a felicidade e vivem num mundo sem saber se e a realidade.
Independentemente dos avanços trazidos pela Televisão e pela Internet, a Mentira e o Fuxico nunca se separaram e habitam o corpo de cada indivíduo da cidade ou mundo, mesmo que, às vezes possa parecer ser para praticar o bem.

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Inspiração

A evolução da criação e propagação das mentiras de acordo com o surgimento dos meios de comunicação

Sobre a obra

Conto livre sem maiores pretensões

Sobre o autor

Iniciado nas artes pela FENAE hoje tento aprender a fazer um pouco de tudo

Autor(a): WILSON MAGALHAES (Wilson Magalhães)

APCEF/PB