Talentos

Tabalho

Olhando de longe, era só um senhor de meia-idade atravessando a rua apressado para entrar em um consultório de psicologia. Seu corpo forte, sua pele negra e a cabeça calva mostravam os muitos anos que o trouxeram até ali, num esforço sem igual em toda sua vida. Reconhecer que precisava de ajuda.
Entrou, sentou-se em um sofá no qual ele mal cabia e pegou uma revista de vinte e um anos atrás, por coincidência, de quando começara em seu último emprego.
Chamaram seu nome e ele se dirigiu a um dos consultórios privativos, não dando a mínima atenção às pilastras de mármore falso, em nada parecidas com do Parthenon, ou de qualquer construção grega que já havia visitado.
— Boa tarde! Faz muito tempo que não vejo o senhor...
— Sim, minha última consulta foi antes da pandemia.
A jovem do outro lado da mesa o acompanhou com um sorriso, enquanto ele se sentava no divã em uma pose de total desconforto, como se estivesse pronto a sair dali a qualquer minuto. Ela guardou um novelo de lã que estava na outra cadeira e sentou-se de frente para ele.
— Nossa! Parece que faz um século, né?
— Sim... e de lá para cá, muita coisa mudou.
— Aceita uma balinha, um chá de romã?
— Um chá caía bem. Há muito tempo venho tentando marcar uma consulta e não consigo. Sabe como é, muito trabalho, e a mudança...
— O senhor até chegou a marcar, mas não compareceu. Teve algum problema com a família?
— Ah, o de sempre. Me separei ano retrasado, de novo.
— Então é mesmo o trabalho... O que o senhor anda fazendo?
— Bem, estou trabalhando com atendimento. Serviço estressante, com um cansaço diferente de tudo que já vi e vivi.
— O senhor não trabalhou no Porto, como estivador?
— Isso foi há muito tempo. Mas era um serviço bem diferente deste de agora.
— O senhor então resolveu trocar totalmente, se reinventar e tal...
— Sim, eu achei mesmo que iria me encontrar num trabalho menos físico e mais intelectual.
— E qual tem sido o problema para o senhor então?
— Bem... Eu tenho uma jornada estafante, começo cedo, almoço correndo e sempre estou com o celular na mão... Tenho uma carteira para cuidar e pessoas a ajudar, sabe? Mas é que todo problema parece o fim do mundo, então estamos sempre correndo e apagando incêndios. Isso vai até tarde e eu não tenho conseguido me desconectar, nem quando chego exausto em casa, ou nos finais de semana. Já tentei ocupar o corpo e a cabeça com outras coisas, mas parece que estou andando em círculos.
— Mas o senhor sente orgulho do que faz, ajudando as pessoas a resolverem seus problemas.
— Não dá tempo de sentir orgulho. Não quando estão berrando metas em seus ouvidos, não quando os clientes sabem seu endereço, e muito menos... Opa... Me dá um minutinho?
Contrariada, ela aponta o banheiro para ele, que entra com o celular na mão, tocando Bolero, de Ravel.
— Sim, eu te falei que viria à terapia. Não, não vou participar do comitê hoje. São só duas horas, cara! Até parece que o céu vai cair na cabeça de vocês se eu não estiver segurando... Sim. Terceira gaveta. Aham... Tá. Chego aí em uma hora.
Quando ele volta à consulta, ela está impassível, com o semblante fechado e uma peça de tricô sobre o colo. Pousando as agulhas, ela tira os óculos e fala, em tom de desalento:
— Colegas de trabalho?
— Sim, meu chefe. Olha... Eu acho que não foi uma boa ideia. E se a gente remarcar?
— Igual você fez comigo em 1972, Sísifo?
— Ah, Psiquê! Também não é assim! De lá pra cá, eu ajudei a construir a Internet, com satélites e tudo! E tinha a Guerra Fria, a Revolução Verde... A crise do Petróleo...Você sabe que não consigo parar!
— Sísifo, eu só tenho horário livre para você em 2065. Se cancelarmos essa consulta, vou entender que você não está pronto a resolver sua situação.
— Mas tanta coisa depende de mim... Não posso deixar minha equipe na mão! Eu te falei que a Ana teve filho? Que o Carlos vai sair em intercâmbio? Que o Oswaldo...
— Sísifo, e você?
— Ah, eu aguento! Eu nasci pra um trabalho desses! É só que... às vezes, parece demais.
— Você tirou férias ano passado?
— Sim, foi muito bom! Tirei a certificação que faltava e terminei meu MBA...
— Sísifo... E descansar? E se divertir? Rir, tomar um sol, sair com os amigos...
— É que eu chego tão cansado ao fim de semana, que mal consigo tocar meus outros projetos... Você sabe como é, Psiquê. Rodamos, rodamos... e no fim, você está aí, tricotando, ajudando os outros com seu talento, enquanto eu tento ajudar com o meu, que é botar a mão na massa.
— Minha ajuda não custa mais do que eu sou capaz de dar, meu amigo... Já paguei meus erros, sou livre para escolher meu caminho. Você também.
— E está sugerindo o quê? Que eu largue tudo?
— Não... só que você não pegue mais do que consegue suportar, que não tente resolver tudo de uma vez, que aprenda a confiar, delegar, pedir ajuda...
— É, sempre fui centralizador, né? Eu bem que poderia tirar uma semana para visitar a Grécia... faz tantos séculos!
— E ela continua linda. Pegue uns amigos, alguém de quem você goste... Tem alguém?
— Sim, mas você não conhece. Ela trabalha comigo... dedicada, esforçada, tem uma mente rápida como uma flecha. Manja de computador e é poliglota.
— Você está contratando uma secretária, ou fazendo uma amizade? O que MAIS ela é? Gosta de flores? Assiste seriados, mergulha, joga cartas...
— é que... não entramos nesse particular. Nos encontramos em um evento do trabalho. Queria chamá-la para sair, mas nossos voos eram conflitantes. Ela mora em outro estado e eu queria muito reencontra-la. Acabamos nos falando por mensagens e ela me chamou para visitar Recife e passar uns dias com ela...
— Então está fácil. Ligue para ela, diga que vai marcar as férias e irá assim que ela lhe der o aval.
— É que faltam duas semanas para outra certificação...
— Se você não for pra Recife curtir ao menos quinze dias com essa...
— Medeia.
— Nome sugestivo... mas ok, eu gostava da outra também. Injustiçada a coitada. Se você não ligar, marcar, ir e deixar seu celular para trás, só volto a falar contigo em 2150.
— Ninguém vai morrer se eu tirar uns dias para mim, né?
— E se você não se cuidar, não estará realmente vivo.
— Tem razão! Vou tomar jeito e resolver isso tudo. E pode deixar marcada minha consulta para o mês que vem. Trarei fotos e novidades!
Ela lhe sorri, levanta, apertando sua mão forte e calejada de milênios de trabalhos.
Ele abre a porta com determinação, sai, cumprimentando a secretária e começa a correr em direção ao carro.
Psiquê fala com a secretária, enquanto olha o amigo atravessar a praça e entrar em seu carro, cortando caminho por dentro do estacionamento:
— Olha só... quarenta minutos de sessão! Acho que é um recorde.
— Deixo a consulta de semana que vem reservada?
— Deixe, mas eu tenho certeza que ele não virá. Terá algo “urgente e inadiável, que só ele é capaz de fazer”.
— Parece que seu cliente da quatro desmarcou. Quer que eu encaixe alguém?
— Não precisa... um cochilo me faria bem, como dizia minha ex-sogra. Cancele o cliente das cinco e remarque para amanhã. Vou para casa mais cedo hoje.
— O Senhor Tântalo está há meses tentando uma vaga contigo.
— E por azar dele, ainda não conseguirá. Pode não ser muito, mas meu bem-estar fica à frente do dele. Afinal, se eu não estiver bem, como é que poderia ajudar outras pessoas?

Compartilhe essa obra

Share Share Share Share Share
Inspiração

As notícias de afastamentos de bancários por estafa e burnout e o adoecimento de pessoas próximas a mim por causa da sobrecarga de trabalho.

A demanda por lucro acima da vida é desumana. E desumanamente romantizada.

Chegamos ao ponto de sentir culpa e vergonha do descanso, do lazer... do ócio.

Deveríamos trabalhar para viver, né?

Sobre a obra

Usei a Mitologia Grega, fonte de muitos arquétipos da Psicologia moderna.
Parte disso se deu pela influência de obras como os romances de Percy Jackson, do Rick Riordan e a webtoon Lore Olympus, de Rachel Smythe.

Sobre o autor

Escrevo livros de Fantasia e RPG em plataformas digitais desde 2014;

Participo no canal e nas redes do Papo de Autor.

Autor(a): PAULO ROQUE GOULART VALENTE (Roque Valente)

APCEF/SP