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PALAVRAS NA VITRINE

PALAVRAS NA VITRINE

Aquele homem desconhecido chegou na cidade, que não era pequena nem grande, e se instalou no sobrado que ficou por muito tempo fechado de frente para a praça principal. No mesmo dia chegaram coisas em um pequeno caminhão, os homens foram levando poucas caixas e móveis para dentro e partiram. Por alguns dias nada se via além das luzes acesas no andar de cima, onde por certo moraria, e o homem saindo em horas quase exatas para suas refeições. Cordial e sorridente, saudava a todos que por ele passavam, mas ficou por esse tempo recolhido e quase silencioso, um ou outro barulho vinha de dentro do sobrado. O andar de baixo tinha a porta principal em um canto, larga o suficiente para dar acesso aos dois pavimentos quase de forma independente. Havia uma janela rente à rua que ficou fechada por esses dias primeiros. Numa manhã o homem abriu as duas bandas da porta e a janela, saiu à calçada e instalou uma peça de madeira onde se via caprichosamente entalhada: Palavras na Vitrine.
Daquele dia adiante, em todas as manhãs o homem saía para seu café, voltava e abria portas e janelas desaparecendo em seguida casa adentro. Sempre no mesmo horário, ao fim do dia, fechava portas e janelas e da rua podia se notar as luzes se acendendo no andar de cima. Isso durou algum tempo até que a primeira pessoa resolveu entrar por aquela porta. O sobrado não tinha vitrine alguma, nada além da placa podia indicar o que seria encontrado ao entrar, um homem desconhecido talvez não merecesse confiança. Mas depois que a primeira pessoa ali entrou o sobrado começou a ser frequentado diariamente e cada vez em maior número. Então vou contar a história que sei, porque esse homem foi meu amigo na cidade onde moro e por muitas vezes fui visitá-lo; e ele me disse sobre tudo até o dia em que partiu silenciosamente daquele sobrado, deixando tudo por lá e nunca mais se ouviu falar dele. E foi isto o que ele me contou:
Nâo conheci minha mãe. Meu pai dizia que eu era o único filho dele, mas de minha mãe só Deus saberia. Enquanto tive pouca idade convivi com muitas mulheres na casa onde morei, tias, avó e madrinha, mas nunca mãe ou madrasta. Ninguém, nem meu pai, falava sobre minha mãe. E quando passei a perguntar só respondiam que ela estaria longe e nunca voltaria, nem mesmo seu nome me diziam. Eu vivi bem naquela casa junto ao meu pai e as mulheres da família. Nunca uma privação, nunca outra criança na casa. Ao redor havia muitas, e sempre que podia me juntava a elas e ali aprendi as brincadeiras e as brigas. Também aprendi a namorar, mas depois preferi viver só. A mulher que eu desejava para amar estaria longe e nunca voltaria. Foi na escola, já num tempo de malícias e confidências, que começaram a mencionar minha mãe. Algumas zombarias, poucas. Talvez por eu ter sido sempre grande e podia meter medo, mas penso que pode ser também que minha fama de amável, sorridente, solidário e feliz me protegesse. E eu era, de fato, um menino assim. Só que ninguém sabia que feliz eu não era, embora não tenha conhecido também infelicidade. Aquele que se tornou meu melhor amigo, com quem andei para todos os lados durante muitos anos, me disse numa tarde em que voltávamos da escola que em sua casa contaram uma história sobre minha mãe. Penso que por causa de meu silêncio que durou até os portões das casas, nada mais ele disse. Entrei pela porta da sala, como de costume, mas não parei para beijar as mulheres e nem para investigar a cozinha em busca de algo de bom saído do forno, e isso sempre havia. Acho que nem disse qualquer palavra, fui direto ao meu quarto, retirei os sapatos e me deitei. Acordei com meu pai sentado ao meu lado, ainda com cheiro do trabalho, alisando meus cabelos, repousando sua mão sobre minha testa e pescoço e me perguntando baixinho como eu estava. Eu não sabia se já era noite ou madrugada, um pequeno facho de luz entrava no quarto pela porta entreaberta, nem tudo estava em silêncio e eu ouvia perfeitamente os sussurros das mulheres no corredor. Respondi que eu estava bem, apenas cansado e que desejava novamente dormir. Meu pai consentiu, me beijou na testa e saiu do quarto, mas eu pude ainda ver uma minha tia ajeitando no chão um colchão, travesseiro e cobertor, e novamente adormeci. Na manhã seguinte entrei pela cozinha com o mesmo comportamento habitual, percebi que todos me olhavam mais atentamente e que conforme eu ia repetindo os hábitos, distribuindo sorrisos e beijos, comendo vorazmente as quitandas e me deliciando com o copo de café com leite, também tudo ia se acomodando na normalidade da casa. E nada de novo aconteceu, tudo se repetiu como em todas as outras manhãs. Terminada a aula eu disse ao meu amigo, já voltando para casa, que eu desejava saber o que contaram a ele sobre minha mãe. Naturalmente ele se pôs a falar e foi isto que, atentamente, ouvi:
Mamãe disse que foi muito amiga de sua mãe, e que ela era uma jovem amável, sorridente, solidária e feliz. Muito inteligente, trazia sempre um livro e um caderno consigo. Da profusão de palavras que lia nasciam sempre outras frases que ficavam registradas em seu caderno. Em qualquer lugar em que houvesse ao menos uma pessoa disposta a ouvir, ela punha-se a recitar o que o caderno guardava, e sempre havia muitas pessoas apreciando. E assim ela era amada e admirada, sempre rodeada de pessoas de todas as idades. Convidada a recitar em reuniões festivas, nunca recusava e sabia sempre a hora certa de parar para que outros acontecimentos ocupassem os espaços. Mas logo alguém sugeria novamente que ela recitasse, os cadernos já eram quatro e com o tempo surgiram outros. Havia um jovem que musicava seus poemas e também era convidado para as reuniões e às leituras passaram a se incorporar também as canções. Esse jovem era seu pai e, quando veio o tempo certo, se uniram. Por muito tempo eles se dedicavam aos trabalhos e cuidados da casa, mas os convites às festas se repetiam nunca recusavam. As cancões e os poemas eram cada dia melhores, perfeitamente ensaiados e encantavam ainda mais. Um dia veio você, e algum tempo depois do nascimento ela partiu. Mais nada me foi contado, eu até perguntei mas mamãe disse que era só o que sabia.
Na noite daquele mesmo dia aguardei meu pai chegar em casa. Contei a ele o que tinha sabido e pedi que me dissesse tudo sobre minha mãe. Ele não perguntou como eu fiquei sabendo disso, apenas sentou-se numa pequena cadeira que havia em meu quarto, fechou a porta e prosseguiu de onde meu amigo terminara: - Já é tempo de você saber e é verdade o que lhe disseram, fomos muito felizes. Mas tudo tem seu tempo, e chegou o de termos filhos, concordamos os dois. Durante toda a gravidez nós nunca deixamos de escrever, compor e ir às festas. Perto de você nascer eu disse a ela que desejava que fosse o primeiro de uma grande família, e ela já sentia a dificuldade de nos mantermos presentes nas reuniões, então era hora de começarmos a nos acostumar com outro jeito de viver. Um mês depois você surgiu para o mundo e durante esse tempo sua mãe se calou. Viveu conosco até que você já pudesse se alimentar sem ela e um dia partiu silenciosamente e nunca mais voltou. Voltei a essa casa e aqui estamos ainda hoje. Mas procurei sem parar por sua mãe, até o dia em que recebi uma notícia e parti para outra cidade. Lá havia uma casa sempre de portas e janelas abertas, e na fachada uma placa onde se lia “Vitrine das Palavras¨. Me hospedei quase em frente, por ali fiquei duas noites e dois dias inteiros e pela manhã parti. Durante o dia eu observava pessoas que entravam e saiam, levando ou trazendo livros e outros objetos de arte. À noite abria a janela de meu quarto, de frente para a rua, e ouvia as pessoas recitando e cantando naquela casa muito iluminada. Uma voz reconheci, embora parecesse entoar uma ou outra nota de tristeza ou saudade. Mas era, sem dúvida a mesma voz. Nunca ali voltei e vivo, desde então, essa vida que conhecemos. E nunca mais canções.
Abracei fortemente meu pai, que saiu no mesmo passo de sempre do quarto, apagou a luz e adormeci. Desse dia em diante nada mais se falou. Quando entendi que estava pronto aluguei o sobrado onde minha mãe viveu. E aqui fiz a ela minha homenagem com as palavras na vitrine. Instalei essas duas mesas rodeadas de cadeiras, os três pequenos sofás e ali aquela pequena cozinha. Conforme as pessoas passaram a entrar eu oferecia café, um ou outro biscoito e estórias. Nenhum ornamento, nenhum livro, nenhuma canção, apenas a luz dos dias pelas janelas e portas abertas, as luzes das lâmpadas à noite e tudo ali, paredes, móveis, xícaras e pessoas, eram as próprias vitrines das palavras. Recebia em gratidão outras palavras, e houve quem dissesse se lembrar que ali já teria existido, em outro tempo, algo de nome parecido. Nunca o nome de minha mãe, sequer uma alusão, mas alguns olhares pareciam dizer que podiam reconhecer algo em mim. Crianças vêm durante o dia para ouvir estórias, é a hora das balas e dos bolos. Por quanto tempo pretendo ficar? Só até consumir toda a saudade.
E hoje eu conto a vocês tudo isso, porque há memórias que não se devem apagar, mesmo que delas não sejam conhecidas as pessoas.

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Inspiração

HÁ MEMÓRIAS QUE NÃO SE DEVEM APAGAR, MESMO QUE DELAS NÃO SEJAM CONHECIDAS AS PESSOAS.

Sobre a obra

LIVREMENTE AS IDEIAS ME SURGEM E PASSO PARA O PAPEL.

Sobre o autor

ME DEDICO DESDE SEMPRE ÀS ARTES, SEJA COMO CONSUMIDOR OU PRODUZINDO CONTOS, CRÔNICAS, POESIAS E CANÇÕES.

Autor(a): ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA (CACÁ OLIVEIRA)

APCEF/MG