Talentos

Na trilha dos ossos

Na trilha dos ossos
Faltavam alguns quilômetros para chegar à cidade onde passei a infância, quando a moça do GPS indicou: “em quinhentos metros seu destino estará à direita”. Como assim? Logo à frente havia uma passagem de nível indicada por uma placa vandalizada da inoperante ferrovia.
Sobreveio a curiosidade; haveria um atalho para o lugarejo onde nasci? Segundo meu pai, ali não havia boa lembrança. Parei no acostamento. Mal cabia o carro. Por um descuido, um trator quase me leva a porta e a vida. Segurei-me à pulseira de caroços de azeitona que trazia desde criança; o que restou desde o desaparecimento de minha mãe. Elevei meus olhos aliviados ao céu. Um carcará rasgou o espaço em direção aos trilhos, vocalizando seu canto rouco. O animal costuma associar a passagem do trator à oferta de comida. Saber dessas coisas sempre me ajudou a lembrar, com orgulho, de onde eu vinha.
Saí da estrada para a linha férrea, onde um caminho definido pela espessa camada de pedregulhos impedia o crescimento do mato, permitindo que eu pudesse ver que, de fato, havia algumas casas muito distantes na paisagem. Melhor seria voltar e seguir pela estrada. Nesse momento, o carcará cruzou em voo rasante e silencioso, passando na altura do meu rosto. Senti um arrepio.
Um menino sem os olhos apareceu na minha frente vestindo uma roupinha que me parecia familiar. Eu deveria, mas não me assustei. Ao invés disso, senti uma dor profunda na alma; um fardo tão pesado como o de ter sido abandonado pela mãe. A criança pegou na minha mão e foi me conduzindo à margem dos trilhos. Havia ossadas de animais em vários pontos. Quando eu me questionava por que estava seguindo aquele garotinho, surgiu um conjunto de ossos humanos ladeado de farrapos de roupas e sapatos apodrecidos.
Meu inusitado acompanhante agarrou-me o punho na altura da pulseira de caroços, indicando com o outro braço esticado o que eu deveria ver. Aproximei-me e percebi que se tratava de um esqueleto com um buraco no crânio e adornos femininos soltos das carnes assassinadas que viraram pó. Ainda constrangido com tudo aquilo, vi uma pulseira semelhante à minha e um relicário que trazia uma foto de bebê tão estragada que mal pude identificar.
Pensar que algo semelhante poderia ter acontecido com a minha mãe biológica embrulhou-me o estômago e as lágrimas desceram naturalmente. Cavei com as mãos um buraco na terra árida. Enterrei os ossos e tudo o que lhes rodeava. Por fim, pedi perdão àqueles restos mortais, liberando mágoas do que achava ter sido um abandono materno.
Ouvi um apito vindo dos lados onde enxerguei as casas ao longe. O menino abriu os braços e ficou esperando o trem passar. Apavorado, atirei-me para salvá-lo, mas não consegui tocar na criança. Apenas vi a composição deslisar sem ruído, correndo como minha vida.
Com as pernas castigadas pelas pedras, levantei-me e não vi o pequeno. Desesperado, voltei correndo para a estrada. Antes de entrar no carro, o carcará cruzou o céu novamente e tive a impressão de que estava determinado a me atacar. Aquilo foi a última coisa que eu vi antes do impacto do ônibus que me atingiu em cheio pelas costas. Meus olhos saltaram do crânio esfacelado e foram devorados pela ave. Segui viagem no trem com minha mãe, vestindo as roupinhas familiares que eu usava quando criança.

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Inspiração

A perspectiva das pessoas que crescem sem conhecer suas mães biológicas, porque estas foram vítimas de violência contra a mulher; tragédia humana que resiste ao tempo e às leis.

Sobre a obra

O conto é uma obra literária de alcance rápido, sem adornos, capaz de envolver o leitor e lhe proporcionar diversas emoções ao mesmo tempo. O clímax é alcançado com um final contundente e inesperado como preceitua o maior expoente do gênero, Edgar Allan Poe

Sobre o autor

Dedico-me à escrita criativa desde 2019. Escrevo poesias, contos, crônicas e romances com o objetivo de proporcionar uma experiência literária prazerosa e entretenimento criativo, aquele que permite ao leitor chegar a suas próprias conclusões, apoderando-se do texto.

Autor(a): JEREMIAS REIS COMARU (Jeremias Comaru)

APCEF/CE