Talentos

ROTINA

Formavam um casal perfeito: bonitos, jovens, se amavam loucamente. Ele, não passava um dia sem vê-la, quase sempre empunhando uma rosa, sempre com juras de amor eterno. Ela, sempre suspirando, mal comia, pouco estudava; só pensava nele.

Namoraram muito, noivaram pouco e casaram cedo. Foi uma linda cerimônia, com a benção dos pais e do padre, seus rostos estavam radiantes de felicidade, tudo estava perfeito como num conto de fadas.

Mas o tempo que corrói até o ferro, corroeu aquele amor tão sólido! 8 anos e 10 quilos depois, os 2 que antes eram 1, agora são 5. Não há mais rosas, nem gracejos. Quando ensaiam algum carinho, são interrompidos por um anteprojeto de mulher que ainda omite e troca sílabas, reivindicando prioridade, enquanto o resto da prole brinca na rua em frente da casa.

As rugas e a gravidade evidenciam o passar dos anos, saudosos, lembram os devaneios da juventude, da paixão que sentiam, sentem falta da irresponsabilidade, do compromisso sem compromisso...

Quase não há diálogo, a conversa se restringe aos assuntos econômicos, aos parentes ou a algum programa de televisão. Ela mais falante, ele, limita-se aos monossílabos ou mudança de expressão facial.
Ele para manter seu status de macho, a procura uma vez por semana, e com o egoísmo que é peculiar aos homens nessa hora, satisfaz-se e dorme; ela permanece acordada, porém sonha. Revê um álbum antigo de fotografias, relê amareladas cartas de amor... Chora baixinho para não acordá-lo.

A zelosa dona de casa sufocou a bela mulher. Reprime os desejos, esconde as curvas com roupas largas e avental; os belos traços são ofuscados pela falta de cuidado com a pele e pela ausência de maquiagem. Os cabelos privilegiados vivem presos ou escondidos por algum tecido barato.

É quarta-feira, ela acorda cedo para ir à feira; prepara o café para o marido e as filhas; sai sem nenhum cuidado com a aparência, veste a primeira roupa que encontra, prende desleixadamente os cabelos, e sai. No caminho reflete sobre sua vida, seu pensamento divaga enquanto escolhe legumes, melancólica, deixa de lado os legumes e os pensamentos.

Volta-se para as compras; escolhe com cuidado cada item, lembra da banana prata para a filha caçula, da manga espada que o marido adora, da laranja para a filha do meio, do abacate para a vitamina da mais velha, só não lembra de si mesma.

Finaliza as compras. Com uma bolsa em cada mão, absorta, caminha vagarosamente entre as barracas. De repente desperta com uma voz masculina lhe oferecendo ajuda. Aceita; surpresa com a gentileza, principalmente vindo de alguém tão jovem.

No caminho percebe a malícia nos olhos daquele jovem. Sente-se constrangida e lisonjeada. Pensamentos obscenos povoam sua mente; sente-se incomodada, mas não consegue evitá-los. Emoções adormecidas despertam, fica ruborizada como uma adolescente diante do seu amor platônico.

Olha para o rapaz de soslaio, e repara os seus bíceps realçados pelo peso das bolsas, desce maliciosamente o olhar e percebe o abdômen bem definido; não consegue evitar a comparação com o do seu marido; dá um sorriso discreto. Os olhos insistem em continuar o percurso descendente, mas de súbito meneia a cabeça para o lado, como que condenando tal gesto.

Lembra-se que o marido está no trabalho e os filhos na escola, a cabeça chega a casa antes das pernas, e começa a imaginar cada ato: o rapaz levará as bolsas até a cozinha, ela pedirá para que ele aguarde enquanto pegará algum dinheiro para recompensá-lo. Ele recusará, dizendo que deseja outra forma de pagamento. Ela inocentemente se fará de desentendida, quando então o afoito mancebo a beijará súbita e ardentemente. Um carro buzina de repente despertando-a do seu devaneio.

Chegam enfim a casa, ela observa atentamente a vizinhança esperando não ver ninguém. E não viu. Cavalheiro, o rapaz leva as bolsas para a cozinha. Seguindo o script, ela pede que ele aguarde enquanto procura uma nota de cinco. O moço fica quieto como que aguardando a gorjeta. Fugindo ao planejado, ela não se contém; e de súbito avança beijando ardentemente o inexperiente mancebo, ainda imberbe. Ele corresponde.

Sem pensar nas consequências dos seus atos, ela arrasta o rapaz para o quarto, e empurra-o com força fazendo-o cair na cama. Diante da própria inexperiência, ele obedece subserviente. Aquela esposa recatada, cheia de pudores, dá lugar a outra mulher, capaz dos atos mais profanos.

Realizada ela vai para o banho enquanto o rapaz se veste desajeitado. Ela demora, ri sozinha debaixo do chuveiro, lembra com detalhes cada instante das duas últimas horas. Toca seu corpo como há muito não tocava; sente-se linda.

Sai do banho perfumada, seu rosto dá lugar a um sorriso embotado durante anos, volta correndo para os braços do seu novo amante. Ele não está. Chama por ele sem sequer saber seu nome, procura em vão por toda a casa. Ele se foi, e com ele seus sonhos e sua carteira com todo o dinheiro que tinha. Até os brincos de ouro com pérola que estava sobre o criado mudo ele levou.

Descontrolada; chora à cântaros, como uma garota impúbere que termina com o namorado. Pensa até em suicídio. Então lembra das filhas: do sorriso gostoso da mais nova, do carinho e dos beijos que recebe da outra, da mais velha que parece um artista de telenovela... Lembra até do marido. Recorda os bons momentos que viveram juntos.

Decide tentar esquecer o que ocorrera naquela manhã, embora tenha sido inesquecível. Não irá mais à feira, doravante comprará frutas e verduras no supermercado. Volta-se para o universo familiar, para a monotonia das tarefas de casa, o cuidado com as filhas e o marido; tudo como era antes.

Os anos passam rapidamente, e sua vida continua na mesma rotina. Ela e o marido comemoram bodas de prata, em um casamento de palha; sem fogo. E as filhas repetem a história.


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Inspiração

Veio da observação da rotina de casais.

Sobre a obra

A obra surgiu da observação de alguns casais de conhecidos que viviam de aparências, e me inspirou escrever sobre o assunto mostrando principalmente o lado da mulher.

Sobre o autor

Desde pequeno sempre estive ligado a arte de alguma forma: Desenhava bem, fazia escultura com giz da minha irmã professora, confeccionava meus brinquedos... E escrever veio naturalmente.

Autor(a): EDIO WILSON DE SOUZA SANTOS ()

APCEF/ES