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UM ÍNDIO BEM "ANTENADO"

UM ÍNDIO BEM “ANTENADO”
Em 1984 eu trabalhava PAS (Posto Avançado Social) São Félix do Araguaia/MT, uma pequena cidade às margens do Rio Araguaia, no nordeste de Mato Grosso, distante 1.200 km da capital Cuiabá.
Aquele lugar fora palco da histórica Guerrilha do Araguaia, confronto armado ocorrido na década de 60 , quando o exército brasileiro debelou um grupo que resistia ao regime militar e o assunto, apesar do tempo decorrido, ainda fazia parte das rodas de conversa. Percebia-se uma discreta, mas indisfarçável, atmosfera de desconfiança com recém chegados!
Menos discretos eram os conflitos fundiários, onde lideranças como o bispo Dom Pedro Casaldáliga comandavam a invasão de terras sob pretexto de promoverem justiça social. Devido a isso, os católicos (chamados de “prelazia”) não eram bem vistos pela sociedade. Parei de assistir às missas!!
Fiquei um pouco assustado com esse pedaço do Brasil que ainda não conhecia e que era tão rico! A adaptação não foi fácil e nos primeiros dias cheguei a pensar em “pedir demissão”, mas os colegas foram insistentes!
- Todos nós passamos por isso. É difícil, mas logo você se acostuma!
Dito e feito. Acabei fazendo grandes amizades e isso facilitou as coisas!
O acesso via terrestre era desafiador porque 400 km eram sem asfalto e isso nos impunha grandes restrições. Na época das chuvas, caminhões que abasteciam a cidade com alimentos ficavam atolados pelo caminho por dias e até semanas!!
Nesses períodos, as frutas, verduras e legumes se tornavam muito escassas e me recordo que certa vez cozinhamos mamão verde pra consumir como se fosse “salada de chuchu”! Era o jeito, meu amigo!
Com o tempo, cultivei uma pequena horta no quintal de casa e, mesmo com os olhares de desconfiança dos vizinhos, que não tinham esse hábito, colhi tomate, couve, pimentão, etc.
O clima era de calor intenso, chuvas abundantes e muita vegetação. Dava pra escolher entre os “borrachudos”, “piuns” e mosquitos variados, inclusive, o maldito anopheles, transmissor da malária, cuja incidência atemorizava! Havia poucos recursos médicos e era comum encontrar pessoas pálidas e trêmulas com altos graus de febre. Cheguei a atender muitos assim, tremendo “igual vara verde”. Mas aquilo parecia fazer parte do cotidiano e até se surpreendiam com a minha reação!
– É malária! Você nunca viu?! É só tomar “quina” que a gente melhora!!
Assim, fui conhecendo um pouco daquela gente e da região Araguaia, com suas belezas naturais e riquezas inestimáveis. As lindas praias, os Tucunarés, o “tracajá”, o Boto cinzento, as gigantescas “piraíbas”, o ameaçado “pirarucu” e as imensas tartarugas que põem seus ovos na praia, num espetáculo de rara beleza!
Mas as privações incomodavam demais e, para que o leitor tenha uma idéia, eu e os outros dois colegas da Caixa ( éramos em três ), chegamos a fretar um táxi aéreo ( um “teco-teco”), para sobrevoar a ilha do Bananal até a cidade de Gurupi, hoje no Tocantins, pra fazermos compras, ir ao cinema e coisas assim... O piloto era nosso amigo e facilitava o preço!
Numa dessas nossas incursões, foi marcante o momento em que avistamos um quiosque da “Kibon”. Parecíamos crianças ou “bichos-do-mato”, ávidos por sorvete. Que maravilha!!
No governo Sarney, que em 1985 impôs rigoroso tabelamento de preços, a cerveja (e outros produtos) sumiu das prateleiras. O jeito foi apelar para o “teco-teco” pra buscar alguns engradados em Gurupi. Na volta, a disputa pelas “loiras” foi das mais acirradas!
Era tudo muito diferente pra mim e essas experiências continuam vivas na minha memória. Dentre elas, o meu primeiro contato com os índios me parece a mais inusitada!
Havia muitos “Carajás” e “Xavantes” na região e eu tinha curiosidade em conhecer melhor a cultura indígena, seus costumes, suas histórias, enfim.
Até que um dia um deles se adentrou na nossa unidade. É hoje, pensei comigo!!
Era um tipo esguio, magro e alto; usava óculos escuros e trajava roupas que em nada lembravam um “silvícola”. Mas tinha cabelos compridos, a pele queimada e um pedaço de pau atravessado na orelha. Um índio!
Aproximei-me, curioso, mas antes de sequer cumprimentá-lo, ele se antecipou:
- Ei, “bicho”, como é esse “lance” da poupança?
- (??!!!) Como assim??!!
- A capitalização é mensal ou trimestral?
- Hãããã... (??!!)
Procurei disfarçar o espanto e tentei explicar tudo para aquele distinto cliente que parecia conhecer o assunto melhor do que eu!!
Fiquei decepcionado porque não era aquilo que eu esperava! O sujeito era formado em Administração pela UNB e morava numa aldeia na Ilha do Bananal e, soube depois, havia outros na mesma condição. Viviam comodamente sob a tutela da FUNAI, que representava arrimo para aqueles cidadãos!
Esse episódio levou-me a repensar a “questão indígena” que até então tinha como uma etnia inocente, marginalizada e reprimida.
A realidade descortinou um povo que passa ao largo da ingenuidade e primitivismo!


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Sobre a obra

É UM CONTO QUE RETRATA UM LUGAR E UMA OCORRÊNCIA MARCANTE

Sobre o autor

SOU APOSENTADO E AGORA EXERÇO ATIVIDADES PASTORAIS. GOSTO DE ESCREVER E TENHO MUITAS OUTRAS ESTÓRIAS PRA CONTAR!

Autor(a): ARMINDO GOMES NETTO ()

APCEF/MT