Talentos

O busto em bronze de Getúlio

O busto em bronze de Getúlio

I
As rixas entre maragatos e chimangos são antigas e remontam as revoluções do início do século passado e caudilhos faca na bota e bucha de canhão. Imaginamos que em pleno início de segundo milênio estas escaramuças estivessem nos livros de história, e nos causos de galpão.
Mas naquela cidadezinha, lá num canto da pampa gaúcha, maragatos e chimangos tinham suas desavenças à flor da pele. A convivência amistosa era abalada sempre quando alguns dos conterrâneos se excediam na cachaça e se encontravam em lugares incertos, mas prováveis de um lugarejo perdido no mapa. Nos embates entre maragatos e chimangos havia sempre uma percanta, cachaça ou encrustadas remotas desavenças políticas. Como em toda cidade do interior, havia uma praça central com a igreja, um clube, um banco e a sede da prefeitura. A praça Bento Gonçalves era cortada por um caminho de chão batido em toda a sua extensão em duas diagonais. Bem no centro fora construído um arco com o busto de Getúlio para homenagear os cinquenta anos de sua morte. Em cada canto da praça, diagonalmente opostos, dois botecos forneciam bebidas e lanches para os peões e trabalhadores nos finais de tarde, noite adentro. Naqueles bolichos todos os machões batiam cascos, empinavam copos e jogavam truco. O boteco do Osório acolhia os maragatos e o boteco do Santiago, os chimangos.
Havia um acordo não assinado – o velho fio-de-bigode –, e respeitado de que os fregueses de um e de outro estabelecimento mantivessem fiéis aos seus respectivos botecos para evitar altercações por conta de excesso de álcool ou por trapaça no carteado. Como a praça era caminho, várias vezes aconteciam arruaças e brigas no ferro branco ou na arma de fogo. E, claro, as contendas aconteciam justamente nos arredores do arco com a estátua de Getúlio Vargas no centro da praça Bento Gonçalves. Na maioria das vezes em noite alta após o fechamento dos botecos. E foi para evitar uma tragédia entre conterrâneos que o prefeito abriu concurso público para guarda municipal. Exclusivamente para fazer a segurança da praça. O resultado agradou a chimangos e maragatos, os proprietários dos botecos, o pároco e o patrão do CTG Pampa e Fronteira, pois foram aprovados o Bernardino – maragato dos quatro costados – e Miguelzinho – chimango de procedência.
Ingenuamente o prefeito concluiu que as arruaças na praça teriam fim.

II
O problema era que os maragatos não passavam embaixo do arco com o busto de Getúlio, e isso era motivo para discussões acaloradas. Os maragatos faziam o contorno pela grama e seguiam em frente. Maragato da cepa não passava embaixo da estátua.
Noite alta e a praça na maior calmaria. Bem iluminada e resplandecente com o perfume das flores e árvores de uma noite de primavera. Ariosto maragato da fazenda Três Forquilhas, vai trocando as patas, com as guampas cheias de cachaça, pelo passeio da praça, num breve instante de lucidez percebe que em sua direção viam três chimangos. O lenço branco refletia nas luzes da praça. Ao aproximarem-se identifica os gêmeos filhos do coronel Venâncio, os malfadados Joaquim e Manoel acompanhados de Fagundes Flores, notório arruaceiro da cidade, que vinham do bolicho do Santiago. Lógico que os quatro conterrâneos se encontraram no arco com o busto de Getúlio Vargas. E também é lógico que Ariosto contornou pela grama para não passar embaixo do busto do Pai dos Pobres. Estava formado o cenário para mais um embate entre lenços vermelhos e brancos. No caso, entre um lenço vermelho e três brancos.
Ariosto contornou o arco e, alguns passos à frente, cruzou com os chimangos. Como todo baixinho alcoolizado fica valente e corajoso, não foi diferente com o maragato. Com o canto do olhou cuidou as reações de Joaquim e Manoel. O encontro fora amistoso. Sem cumprimentos, mas Ariosto não se conteve.
– Chimangada de bosta! – falou em alto e bom som arrastando as palavras e babando no lenço vermelho.
– O que tu falou, o borracho? – e viraram-se em direção a Ariosto.
– Isso mesmo que os três cornos ouviram. Chimangada de bosta!
No centro da praça Bento Gonçalves próximo ao arco em homenagem à Getúlio Vargas estava formada a pendenga. Desafetos políticos e ânimos alterados. O ferro branco brilhou nas mãos dos valentões e a verborragia corria solta. Os xingamentos eram de parte a parte. Variavam de baixarias dedicadas às mães, pais, irmãos e irmãs. Inclusive personagens da nossa gloriosa história foram contemplados com os insultos, dentre eles Honório, Borges, Flores e Zeca Netto. Sobrou até para o jovem prefeito que não era maragato e nem chimango, mas que torcia para o Grêmio, e foi enquadrado como corno tricolor. Quando os contendores iriam entrar nas vias de fato, ouve-se um tiro que passou de raspão pelo nariz do busto em bronze de Getúlio. Pânico geral entre os peleadores.
Bernardino, o guarda maragato, ocultado pela penumbra debaixo de uma copa de cinamomo, avisa que não quer balbúrdia no centro da cidade.
– Circulando... circulando... circulando... os quatro. – apontando o revólver para os briguentos.
Diante da mira do guarda municipal, guardaram seus punhais e, lentamente, foram se dispersando. Cada um deles seguiu o caminho, ou seja, voltaram para os respectivos botecos dos seus correligionários nas extremidades da praça.
Ariosto resmungou um “Pica pau de merda” e ouviu um “o que é teu tá guardado” de Manoel.

III
No boteco do Osório, Ariosto foi saudado como herói por ter desafiado sozinho os filhos do fazendeiro Venâncio juntamente com o capanga do Fagundes Flores. E pagou uma rodada de purinha para os amigos. No boteco do Santiago, Joaquim não conseguia esquecer o xingamento que sofrera “chimangada de bosta” pulsava em sua mente.
– Eu vou castrar aquele maldito maragato. E vou pendurar os bagos dele em frente a prefeitura. Te prepara Ariosto! – gritou para espanto geral dos demais frequentadores.
Mas gaúcho que é macho não leva desaforo para casa, é a tal história: um boi para não entrar numa briga e uma boiada para não sair. Cada um deles insuflados pelos amigos de bar ficaram cada vez mais valentes.
E logo estavam os contendores novamente em direção ao centro da praça Bento Gonçalves. Só que dessa vez acompanhados por uma turma de cada lado. Ariosto e mais três maragatos e um colorado charrua de Tacuarembó e do outro lado os gêmeos acompanhados de Fagundes Flores e mais dois chimangos sem importância.
Do sul, um ventito varria a pampa e aromatizava a praça com o perfume das flores do campo.
Bernardino e Miguelzinho saboreavam um pito no coreto quando viram as turmas de chimangos e maragatos nas extremidades da praça indo em algazarra em direção ao arco do Getúlio. “Parecia uma eguada disparando no varzedo”. Os guardas se olharam com espanto como quem diz “a coisa vai feder” e se tocaram para o centro junto ao arco com o busto do Getúlio. Agora os números estavam parelhos cinco chimangos e cinco maragatos armados com punhais e facões e bêbados em gritaria, tumulto e balbúrdia pelos caminhos diagonais da praça.
Para acabar com o entrevero que estava por vir, Miguelzinho dá um tiro para o ar e novamente atinge de raspão o nariz do busto em bronze de Getúlio, mas os dois bandos não perceberam que os guardas estavam numa atitude de acabar com a confusão e continuaram a correria para o confronto no ferro branco. Então foi a vez de Bernardino puxar o revólver, só que na direção dos maragatos e arrancou o chapéu de Ariosto num balaço certeiro. Miguelzinho também reagiu com um tiro para o chão na direção dos chimangos e tirou um naco do couro da bota garrão de potro de Joaquim a bala ricocheteou numa pedra e atingiu o nariz do busto em bronze de Getúlio. Pânico geral novamente. Branquearam os olhos de chimangos e maragatos.
– Cada grupo para as suas casas ou vai ter defunto na praça nessa noite – falou Miguelzinho taxativamente.
– Para as casas e não para os botecos, bando de borrachos! – concluiu Bernardino.
O grupo foi se dispersando e começaram o retorno para seus lugares de origem. Resmungaram, esbravejaram, mas deram meia volta seguindo as ordens dos guardas. Quando a coisa parecia calma Bernardino e Miguelzinho conseguiram relaxar.
– Bah! Mas que noite, hein índio velho?
– Lidar com bêbados de bombacha não é fácil.
Os ânimos pareciam serenados.

IV
Resolveram fazer uma ronda na praça para ver se, realmente, a calmaria tinha voltado ao centro do município. Aparentemente, os dois bandos estavam dispersos. Bernardino saiu em direção ao grupo dos maragatos e fez o contorno pela grama ao passar pelo pórtico com o busto de Getúlio. Como faziam todos os cidadãos que ostentavam o lenço vermelho.
Vendo aquela cena, Miguelzinho comenta que ele, como guarda municipal e autoridade da ordem, deveria dar o exemplo e não estimular a discórdia. Essa história de chimangos e maragatos era coisa do passado e de guascas bombachudos e desordeiros. Apenas os fanáticos não passavam embaixo da estátua. E, além do mais, pisavam na grama, o que era proibido. Bernardino segue em frente sem dar ouvidos ao colega, dizendo que maragato da cepa jamais passaria embaixo do busto do Getúlio Vargas. E ele era descendente de uma família de maragatos peleadores desde as revoluções de 23 e 24. E toda vez que fosse fazer a ronda na praça iria contornar o arco.
– Tenho dito! E não passo embaixo do arco! – Sussurrou um “chimangada de merda”. Mal concluiu seu comentário e tropeçou em uma pedra. Caiu de cara no chão batido. O revólver disparou acidentalmente e acertou em cheio o nariz do busto em bronze de Getúlio.
Embora tenha sido o mais alvejado da noite com quatro balaços, por conta das borracheiras dos munícipes, o busto em bronze de Getúlio continuava impávido no meio da praça em cima do arco.
Bernardino estava se recompondo da queda e se tapeava todo para tirar a poeira do uniforme, ainda pragueja com a beberagem de arruaceiros, quando ouve vozes de borrachos cantando “Querência Amada” de Teixeirinha. Fixou os olhos como que não acreditando no que via.
Mas eram eles, sim: Ariosto, maragato, e o chimango Fagundes Flores.
Cada um com uma guampa de cachaça nas mãos. Apoiavam-se mutuamente para não cair quando tentavam fazer passos de um xote figurado.
“Deus é gaúcho de espora e mango. Foi maragato ou foi chimango”.
– Deus é maragato!
– Deus é chimango! Seu merda!
Gargalhavam enquanto caminhavam num lento ziguezague de bêbados em direção ao busto em bronze de Getúlio Vargas.

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Inspiração

Rixas entre maragatos e chimangos.

Sobre a obra

Desavenças políticas que por vezes iam as vias de fato entre maragatos e chimangos no Rio Grande do Sul.
E se acrescentarmos a cachaça ao episódio a coisa fica mais trágica e por vezes engraçada.

Sobre o autor

Sou graduado em Engenharia Civil e funcionário aposentado da Caixa.
Autor dos livros:
Os agachados – crônicas da Era Lula (edição 2012)
Contos de Chumbo (Chiado Editora 2015)
Tintos e Contos (Penalux 2017)
O código Locatelli – romance – (Penalux 2018)
Sofrendo em Paris - crônicas - (Penalux 2018)

Autor(a): ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA (Athos Ronaldo Miralha da Cunha)

APCEF/RS