Talentos

O trem do desaniversário

Enquanto não vem meu trem, deixei as notícias já mortas do jornal de lado, e decidi brincar de analisar o vai e vem da estação.
Vejo gente leve, de sorriso premonitório de um amor a encontrar.
Vejo faces desfocadas pelas lágrimas, mais pesadas que a própria bagagem, derramadas sobre prematuras saudades dos últimos abraços.
Vejo gente zumbi que quer, desesperadamente, partir, pouco importando o destino, com a ingênua credulidade de que, o que lhe aflige não o acompanhará.
Vejo gente ainda em formação, uma criança, no colo da mãe, que nem sabe para onde vai...mas...expõe uma contagiante alegria de que se sente em segurança, carregando carinhosamente, a única bagagem que lhe interessa, um amarrotado ursinho de pelúcia, que, em pouco tempo, será esquecido num canto qualquer da nova casa.
Então...quando já estava pronto para avaliar um outro tipo de gente, repentinamente, fui surpreendido por um par de olhos que surgiram , inquisidoramente, no reflexo do vidro da janela do trem anterior ao meu, prestes a partir. Era o meu Eu, ecoando a mesma pergunta que a balconista que me vendeu o bilhete da passagem me fez, momentos atrás:
- E você? Que tipo de passageiro é?
-COMPLEXO. Respondi a ela, tentando dar logo um fim ao diálogo com estranhos, como faço sempre.
Mas...para meu espanto, ela olhou-me com olhos Freudianos, sorriu e disse:
-Para as pessoas complexas o melhor trem é o do Desaniversário.
Eu já ia rebater a sua resposta com o sarcasmo que me é peculiar, quando olhei o crachá dela e vi escrito: ALICE. Ela percebeu e disse:
-Sim. Alice, como aquela do País das Maravilhas. E repetiu:
-Seu trem é o do Desaniversário, ele lhe proporcionará rever as mesmas paisagens do passado de forma seletivamente apaziguadora das origens de suas angústias, e isso, lhe servirá de combustível para avançar, à toda velocidade, em novas paragens, sem descarrilhar.
Eu sorri. Ela retribuiu.
Eu paguei o bilhete.
Agradeci. Ela retribuiu.
Esses fragmentos de lembranças foram dispersados pelo barulho do trem que partia e meu Eu refletido, esperançosamente sorridente, se dissipou com a fumaça da locomotiva.
Mirei na colina que fazia surgir os trilhos e enxerguei lá...bem distante, o meu trem que vinha.
Abri os olhos e disse:
Vem.

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Inspiração

Sempre nos meus aniversários faço uma reflexão sobre que ser humano eu estou me tornando, para que caminhos o destino está me levando, e, metaforicamente falando, nada melhor para representar nossa vida terrena do que uma estação de trem.

Sobre a obra

Na verdade,na maioria das vezes, o texto já me vem pronto por inspiração e mesclei características de crônica descritiva com diálogos pra dar um tom mais dinámico.

Sobre o autor

A escrita,o desenho e a pintura teem uma agradável insistência em me fazer companhia desde a infância e, de tempos em tempos, o impulso artístico é maior que a rotina do trabalho.

Autor(a): GERVASIO CARDOSO PEREIRA JUNIOR (Geo Cardoso)

APCEF/BA