Talentos

Guerra de Acordes

Minha casa é aquela verde, a única dessa cor na rua. Ela é cheia de portas e janelas que passam o dia todas abertas, mas não há muito barulho a nos visitar. A rua é tranquila, passam poucos carros e a vizinhança não é amiga da farra nem da algazarra. Minha família não concorda muito com minha percepção e a credita ao fato de minha audição não ser lá grande coisa! Mas naquele sábado...
Havia sido uma semana dura no trabalho, muitas ocorrências inusitadas me obrigaram a estar todo o tempo atento e na correria para dar conta de tanta demanda. Alguns colegas faltaram, sistemas falharam, rotinas mudaram, ufa! Que canseira, mas enfim terminou, o fim de semana chegou.
Como de rotina, me levanto cedo e desço para a cozinha para fazer o café. Sim, a casa tem dois andares ligados por uma escada, subimos para os quartos e banheiros, descemos para a sala, copa e cozinha. Enquanto a água do café não ferve, vou à padaria da rua transversal para comprar pãezinhos quentinhos, recém-saídos do forno.
Cumprimento o vizinho da frente, jovem recém-casado, muito simpático e a senhora da casa ao lado, velhinha, muito religiosa e séria. Sigo pensando que eles não têm nada em comum, exceto o fato de já estarem de pé àquela hora no sábado... Devem estar preparando algo.
A parte da manhã é toda preguiçosa, tomo café, leio um pouco, rabisco uns desenhos, tento escrever, mas a inspiração não vem, vejo TV, a família começa a se movimentar, daqui a pouco o almoço está pronto, almoçamos e volto à TV, não me interesso por nada e resolvo tirar uma soneca – ah, é dia de descanso e eu mereço!
Mas antes, vejo da sacada pessoas chegando à casa da frente - o rapaz realmente preparava algo - há um churrasco e muitos jovens como ele e a esposa estão lá. Muita conversa, muita risada, cheiro de carne na brasa, música: rock, mas num volume baixo.
Olhando para a esquerda, uma van estacionada à porta da casa da senhorinha desembarcando algumas outras senhoras e um senhor com um violão. Como todas aquelas pessoas couberam no veículo? O que será que eles pretendem? Estão fazendo uma oração, agora, afinando o violão, ensaiam uma canção, certamente para algum evento religioso.
As duas músicas, na altura em que estão, servirão para me embalar ou talvez nem as ouça no meu quarto – fecharei a porta e a janela. Faz muito calor, melhor deixar a porta aberta. E a janela também.
Nossa, parece que as velhinhas resolveram soltar a voz, SEGURA NA MÃO DE DEUS E VAI... O violão está ligado a um amplificador?
E essa agora?
De repente, começa uma batida muito forte na casa da frente, PÔU TUM CRASH... IS HE ALIVE OR DEAD? YEAHHHH
Eita, que será impossível dormir, vou tentar ler alguma coisa. Primeiro fecho porta e janela.
Mas as velhinhas estão animadas, passam a cantar um tom acima do rock pauleira, GLÓRIA GLÓRIA ALELUUUUUUIA. Se estou conseguindo distinguir a música é por que está muito alto.
Os jovens começam a uivar junto com a música: LIKE A STONE... ALONE ALONE. Já não ouço a música religiosa! Meu Deus, onde irão parar?
AMAR COMO JESUS AMOU... Mais alto.
ALL THE LOVE GONE BAD... UUUUUUUHHH. Ainda mais alto!
São três da tarde. Será impossível aguentar essa barulheira mais tempo.
Mas que novo barulho é esse? Sirene! Polícia! Algum vizinho deve ter chamado. Vou à sacada para ver o que acontece. Todos os sons foram desligados. Policiais conversam com as duas trupes.
A velhinha acusa o rapaz que a acusa. Começa uma falação, uma gritaria. Uma multidão se juntou na rua.
Um policial fala mais alto e todos param para ouvi-lo. Determina que controlem o som ou terá de dar fim às reuniões. Os vizinhos briguentos pedem desculpas e entram para suas casas. A polícia se vai. A multidão dispersa.
As reuniões continuam, mas as músicas não são mais ouvidas.
Paz para o meu sábado.
Ou não! Em meia hora começo a ouvir a música sertaneja no bar que fica atrás de minha casa. E por aí vai até a noite.
Tem nada não, no domingo eu descanso... Haverá paz na casa verde.
Será?

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Inspiração

Situações vividas, contadas com um toque de humor, essa a motivação.

Sobre a obra

Conto curto.

Sobre o autor

Sou uma pessoa inquieta e, para me conter, escrevo, pinto, fotografo, estudo...

Autor(a): JOAQUIM MARCELINO DE ANDRADE NETO (Jack-in-the-box)

APCEF/DF