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O TEMOR DE NAZARÉ

O TEMOR DE NAZARÉ


Nazaré atravessou pensativa a rua. Estava preocupada com o filho que deixara em casa com a filha da vizinha. Não sabia se a criança tinha sido alimentada, se estava bebendo regularmente. Na verdade, não sabia de nada.
Desde que conseguira o emprego na portaria de um colégio no outro lado da cidade, não conseguia nem mesmo brincar com o filho. Saía cedo de casa quando ele ainda dormia. Tinha apenas três anos. Quando retornava, na maioria das vezes o encontrava sonolento, rolando na cama desfeita. Pouco tempo tinha para preparar o mingau que ele ingeria sofregamente e dormia em seguida.
Chegando à parada de ônibus, viu dois homens que conversavam em voz baixa. Sentiu um calafrio, mas não podia retroceder. A imagem do filho não lhe saía da cabeça e com isso aumentava a angústia. Não sabia o que seria dela se a vizinha não tivesse liberado a filha de doze anos para ficar com ele até o meio dia. Depois que ela ia para a escola, o filho ficava sozinha no quarto sob a proteção de Deus, como dizia para si mesma.
Suspirou aliviada quando o ônibus chegou. Entrou rapidamente, sendo seguida pelos dois homens. Encontrou três lugares vagos. Ocupou o que estava ao lado de uma senhora de meia idade, segurando um pacote de supermercado. Os homens sentaram no banco logo atrás.
A lembrança do filho tomou conta de seu pensamento, mais uma vez. Doía-lhe o coração ter que deixa-lo naquelas condições, mas não tinha encontrado nenhuma vaga nas creches do seu bairro. Morava numa pequena casa que lhe deixara o marido quando faleceu em um acidente de trabalho. Nos primeiros meses o pouco que recebera da empresa onde ele trabalhava foi suficiente para ficar com o filho, mas as economias chegaram ao fim e a solução foi procurar emprego. Não tinha parentes na cidade e não queria voltar para o interior, pois sua família era mais carente que ela.
O ônibus parou e ela viu passageiros descendo, outros subindo, mas os que entraram com ela continuaram sentados. Ao seu lado a senhora cochilava agarrada ao embrulho. Quando o ônibus se pôs em movimento, a iluminação interna caiu de intensidade. Ficou só uma penumbra que favorecia àqueles que queriam cochilar. Nazaré não gostou, mas contorceu-se no assento e respirou fundo. Ficou atenta, procurando ouvir o que os dois conversavam.
- ... nós vamos ter que agir.
- Eu sei disso há muito tempo, mas só vou fazer alguma coisa se o chefe mandar - disse o outro.
- Pois se tu sabe e não quer fazer nada é melhor ficar calado. Se alguém der com a língua nos dentes, pode sobrar pra ti!
- Eu só falei pra ti, agora.
Houve um pequeno silêncio e em seguida continuaram a conversa.
- Cara, a criança fica sozinha em casa! Vai que acontece alguma coisa! Vão culpar, com certeza, o Conselho Tutelar.
- Rapaz, eu não sei de nada! Só tomo conhecimento quando chega uma denúncia formal e o chefe me passa - disse o outro.
Nazaré estremeceu. Sentiu o desespero tomar conta do seu corpo. Com certeza aqueles dois a conheciam e falavam para que ela soubesse que a qualquer momento iriam tirar dela o filho. Deu vontade de gritar, mas achou que se o fizesse estaria chamando a atenção deles. No início sentira medo, pois pensava que eles queriam o celular que lhe custara muito e era através dele que conseguia notícias do filho. Agora o medo ficara muito maior. Já não temia perder o aparelho, pois o que estava em jogo era o filho amado.
Quando chegou sua vez de descer, saiu quase correndo sem olhar para trás. Lá fora a brisa fria soprava levemente, contudo ela sentia um calor imenso queimando o corpo.
Foi grande o alívio quando abriu a porta do quarto e viu a criança sonolenta. Tirou um peso dos ombros, pegou-o nos braços e o abraçou longamente.
Seus dias ficaram mais tensos e no trabalho notaram o nervosismo que lhe desnorteava. Quando podia, ausentava-se do posto e ia ao banheiro chorar. Só assim conseguia aliviar a tensão. No final do dia, recomeçava o desespero, principalmente quando chegava à parada e lá estavam os dois homens. Como sempre, tomavam o ônibus, sempre ficando no banco por trás do seu e o assunto era o mesmo.
Um dia resolveu falar com a diretora do colégio, pois não suportava mais a pressão. Depois de ouvi-la calmamente, a diretora fez-lhe uma promessa.
- Pode trazer a criança. Não temos creche, mas vamos colocá-la numa sala do maternal.
Assim foi feito. No primeiro dia a criança sentiu-se acanhada, mas aos poucos se foi ambientando. Mas eis que chega o final do expediente e começa o suplício.
Quando chegou à parada, lá estavam os dois. Embarcaram como de costume, só que desta vez Nazaré estava calma. Apertou o filho contra o peito e procurou ouvir o que conversavam, porém permaneceram calados. Na primeira parada se levantaram. Nazaré notou que eles estavam saindo sem que ela se levantasse e os viu passando por entre as pessoas com extrema facilidade, embora o ônibus estivesse lotado, e estranhou quando passaram pela catraca sem que ela fosse girada e logo em seguida desapareceram ainda no ônibus.

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Inspiração

Foi observando a vida de muita mulheres que procuram criar sozinha os filhos, no desespero de perde-los a qualquer momento sob a ação do Conselho Tutelar.

Sobre a obra

Trata-se de um conto curto onde o autor é o narrador da história.

Sobre o autor

Trabalho há 42 anos na Caixa, participo de concursos na área literária, tenho livro publicado e a publicar. Gosto da arte como um todo, principalmente da poesia. Faço parte da Academia Piauiense de Poesia, ocupando a cadeira nº 24.

Autor(a): ANTONIO VASCONCELOS PACHECO (A. V. Pacheco)

APCEF/PI