Talentos

Rumo ao Apocalipse

Rumo ao Apocalipse

Ismael acordou por volta das quatro horas. Tomou um café ligeiro e pegou a condução para o Centro da Cidade. Comprou um jornal para se distrair nas próximas hora e meia da viagem. O jornal acaba por ter uma utilidade pouco usual: servir de travesseiro para o cochilo com a cabeça na janela. O percurso é composto de um pequeno trecho de ônibus até a estação de trem. O segundo trecho é o mais longo, por volta de uma hora. Finalmente, desceu do trem para pegar o metrô até o seu destino, ao qual chegou por volta das seis horas.

Logo após passar na Igreja para uma breve oração, tomou um cafezinho e comeu um ‘pão na manteiga’ no bar em frente à engraxataria.

Já no local de trabalho, separou todo o necessário para melhor atender seus clientes. A loja possui dez cadeiras, daquelas altas, próprias para o serviço. Cada profissional como que possui uma ‘carteira de clientes’ própria. A loja é um espaço de companheirismo, mas também de competição. Ismael é um profissional cuidadoso que trata seus clientes com distinção e realiza seu serviço com capricho.

Tudo precisa estar pronto bem cedo, pois os clientes desejam chegar de forma impecável aos seus locais de trabalho. A grande maioria é composta de profissionais liberais, advogados e funcionários do sistema financeiro. Também pessoas ilustres como banqueiros e juízes. Igualmente circulam pelo Centro muitos anônimos em busca de um bom emprego e pessoas a caminho do Fórum para uma audiência. A engraxataria é um espaço democrático.

A loja também oferece produtos e acessórios para aqueles que gostam de manter seus calçados, alguns bem caros, cuidadosamente tratados com artigos de boa qualidade que não são encontrados em supermercado.

Hoje o primeiro a chegar foi Dr. Waldemar. Profissional de sucesso, é responsável por uma grande banca de advocacia trabalhista. Seus serviços são de tal modo qualificados que é frequentemente chamado para participar de operações de combate ao trabalho escravo. É um dos mais fiéis clientes de Ismael.

Ismael: Bom dia, Dr. Waldemar. Que bom vê-lo logo pela manhã. Sinal que meu dia será bem lucrativo. O que que vai querer hoje? Vai uma tinta? Parece que o sapato precisa de uma caprichada.

Dr. Waldemar: Bom dia, Ismael. Hoje vou querer apenas a graxa mesmo. Ainda está bom. Deixa a tinta para semana que vem.

Ismael: Então Dr., como estão as coisas no trabalho?

Dr. Waldemar: Piorando. O pessoal está preocupado porque o número de ações diminui a cada dia.

Ismael: As coisas não estão fáceis mesmo. Também, sem emprego não tem ação trabalhista, né!? E nem pessoas querendo engraxar sapatos, disse em tom de brincadeira.

Dr. Waldemar. Isso mesmo. E depois da nova lei, as pessoas estão com receio de entrar com ações na justiça, acabar perdendo e ter que pagar as custas processuais. Ficamos no escritório a maior parte do tempo olhando para as paredes. Do jeito que vai, creio que em breve você perderá um cliente, disse sorrindo.

Ismael: Nem me fale uma coisa dessas, Dr. As coisas vão melhorar.

Dr. Waldemar. Espero. Mas diga você, como acha que será o dia de hoje?

Ismael: Olha, Dr., com essa confusão toda entre China e Estados Unidos, os investidores internacionais estão procuram opções mais seguras. Países emergentes, nem pensar! O risco de aplicar no Brasil é alto e acabamos ficando em segundo plano. E, ainda mais, com a crise que o Brasil está, aí é que as coisas ficam complicadas mesmo.

Sr. Waldemar: Entendo. E com o esse governo louco... Parece que ninguém se entende.

Ismael. Minha nossa, Dr. Os malucos não se entendem mesmo. Cada dia uma novidade pior que a outra. Tudo isso só prejudica os investimentos. Todo mundo evita correr riscos.

Dr. Waldemar: É verdade. Mas, então, o que você acha melhor fazer em um momento como esse?

Ismael: Dr., o melhor é ficar com o pé numa posição mais conservadora; ficar onde está. Se tem dinheiro para aplicar, melhor tesouro direto ou renda fixa. Ações só se for nas Blue Chips.

Dr. Waldemar: E as estatais? O governo diz uma coisa e acaba fazendo outra.

Ismael: É, Dr. Esse negócio de estatal é assim mesmo. É um bicho meio esquisito: a gente não sabe se é do mercado ou se é do governo. Mas, veja bem, olhando do ponto de vista do investidor, não é ruim. Sempre dá um lucro razoável. E o governo oferece uma boa garantia.

Dr. Waldemar: Tenho algumas ações da mineradora. Depois do desastre a coisa anda bem feia. O que você acha? É melhor vender?

Ismael: Dr., não aconselho. É melhor deixar como está. Vai se recuperar.

Dr. Waldemar: Os donos são uns canalhas mesmo. Ouço muita gente que pensa que todos os aplicadores deveriam abandonar uma empresa que faz o que eles fizeram. Creio que têm razão.

Ismael: Dr., vamos ser práticos. Sinto muito, mas o pessoal que morreu já está morto mesmo. Não podemos fazer mais nada por eles. Daqui a pouco as pessoas esquecem e tudo volta ao normal. Como disse, é melhor esperar as coisas melhorarem.

Dr. Waldemar. Sabe de uma coisa, Ismael. As coisas andam muito esquisitas. Agora qualquer um se acha investidor. O que não faltam são assessores de finanças. A impressão que tenho é que isso é uma grande ilusão. Qualquer hora desmorona tudo e ficaremos com um monte de papagaios nas mãos sem saber o que fazer.

Ismael: Então, por isso é bom ter uma carteira com ações de bancos. Para eles não tem tempo ruim. Qualquer problema tem sempre um governo para dar uma ajudinha. São grandes demais para quebrar.

FIM

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Inspiração

De uns tempos para cá virou febre buscar viver de renda. E o negócio de assessoria em finanças também. A maioria dessas pessoas acredita na "lei" do lucro infinito, ignorando os riscos de se investir no Brasil. Lembra-me da famosa história do engraxate que ofereceu ações para Joe Kennedy e ajudou o milionário a se antecipar à crise de 1929.

Sobre a obra

A obra é o diálogo inusitado de um engraxate que orienta o cliente rico e sofisticado a aplicar seu dinheiro. A ideia é promover uma reflexão sobre a atual febre por investimentos e a crença que o lucro pode ser infinito e sem riscos. E, em paralelo, mostrar a rotina do suburbano que trabalha no centro de uma grande cidade em meio a crise.

Sobre o autor

Sou carioca e moro atualmente em Campo Grande / MS. Tenho 57 anos, casado e com dois enteados, gêmeos de 21 anos. Sou formado em Ciências Sociais. Gosto mais de ler do que de escrever. Chama minha atenção a falta de sentido de muitas coisas da vida cotidiana. Procuro escrever, de forma bem humorada, sobre tais coisas.

Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Roberto Conceição)

APCEF/MS