Talentos

O julgamento

— Como acabamos de ver, as evidências não nos deixam dúvidas. Vimos, através das fotos, os escombros das casas das vítimas totalmente destruídas. O laudo da perícia encontrou pegadas condizentes com as do acusado nos arreadores do local do crime. O laudo foi conclusivo ao afirmar que havia impressões digitais do réu nas maçanetas das portas. Ademais, duas testemunhas afirmaram, sob juramento, terem visto o réu batendo nas portas das casas das vítimas e literalmente gritando para que abrissem. Como sabemos, o acusado já é famoso na região por sua índole, digamos, agressiva. Ele é investigado em outro processo por falsidade ideológica e tentativa de homicídio contra uma jovem e sua avó idosa. O que mais precisamos saber? Diante de tudo isso, não há que se duvidar sobre a autoria do crime. Está claro que o Lobo é culpado. Ele tentou de todas as formas devorar os três porquinhos e, ainda que não tenha obtido êxito em sua empreitada, devemos fazer justiça neste Tribunal. Ele deve ser condenado.
O promotor Bode encerra seu discurso com serenidade e segurança. Aparentemente suas palavras surtiram o efeito esperado no júri.
— Com a palavra, a defesa. — profere o Leão, juiz da sessão.
O Júri, formado por animais de diversas espécies, como zebras, antílopes e javalis, olha incrédulo para o Dr. Carneiro que se levanta para dar início à defesa. Como alguém que é uma vítima em potencial de um Lobo pode defendê-lo? O ovino inicia sua fala:
— O processo penal prevê várias fases até levar alguém à condenação: inquérito, indiciamento, denúncia, pronúncia, etc. Os ansiosos podem dizer que é um meio de favorecer a impunidade. Mas não. O objetivo é garantir que nenhum inocente seja condenado injustamente. E apesar de todas as fases, chegamos hoje na última delas, o julgamento, correndo o risco de levar um inocente à condenação. Mas o Lobo já é acusado em outro processo, diria a acusação. Sim, é verdade. Mas saibam que eu poderia, hoje mesmo, abrir um processo criminal contra qualquer um de vocês do Júri mesmo sabendo que são todos inocentes. É evidente que eu responderia pelo meu ato. No entanto, vocês passariam a ser tratados como acusados até que conseguissem provar que não estou dizendo a verdade. E isso poderia levar meses ou anos. Acusação não é condenação. Lembrem-se: todos são inocentes até que se prove o contrário. Acusados são inocentes até que se cumpram todas as fases do processo penal.

Dirigindo-se ao Juiz, o advogado continua:
— Meritíssimo, gostaria de chamar a minha testemunha.
O juiz autorizou a entrada da Senhora Vaca. Esta entra desajeitada e visivelmente desconfortável. O Dr. Carneiro inicia as perguntas:
— Senhora Vaca, diga-nos: o que a senhora faz, com o que trabalha?
— Eu tenho um restaurante vegano no bosque e sou presidente da SVF, Sociedade Vegana da Floresta.
— A senhora poderia nos dizer de onde conhece o Senhor Lobo?
— Além de cliente do nosso restaurante, o Senhor Lobo é membro da SVF.
Ouvem-se manifestações de espanto na plateia. O Juiz pede silêncio e o Advogado prossegue.
— Quando vai até o restaurante, o que o senhor Lobo costuma pedir? Tem algum prato que seja da preferência deste cliente?
— Sim, ele sempre pede nosso prato especial: A salada verde.
— Ele costuma fazer alguma exigência especial?
— Ele pede para que eu não coloque o molho de tomates que faz parte do prato.
— A senhora sabe o motivo dessa exigência?
— Ele me disse certa vez que o molho vermelho o faz lembrar sangue e isso o deixa enjoado.
Novamente percebe-se o espanto e indignação do público.
— Agradeço, Sra. Vaca — disse o Dr. Carneiro. Em seguida, virou-se para o Júri e reiniciou sua fala com empolgação. — Vejam, nobres jurados! o Senhor Lobo, além de ser vegano, membro da SVF, se sente enjoado ao ver o vermelho do molho de tomate. Como pode essa sensível criatura ter tentado devorar três porquinhos lindos? Não faz o menor sentido. Mas eu tenho que concordar em termos com a acusação. Não podemos negar que o Sr. Lobo esteve na porta dos porquinhos e pode até ter destruído a casa de dois deles. Há muitas evidências que indicam isso. Não obstante, afirmo categoricamente que não houve dolo nessa ação. Tenho certeza que o meu cliente em nenhum momento teve a intenção de prejudicar as três pequenas criaturas. O que acontece é que o Sr. Lobo, que eu conheço muito bem, possui um terrível defeito: ele é muito fervoroso em sua fé. O Lobo, meus amigos, assim como eu, é membro do Salão do Reino das Testemunha de Jeová. Sim, o Sr. Lobo gritou! Estava clamando aos porquinhos para que conhecessem as mensagens de Deus. E na única e exclusiva intenção de levar a palavra do Senhor aos pequenos, acabou por exagerar na missão que lhe foi concedida e, acidentalmente, destruiu as frágeis casinhas de palha e madeira. Dessa forma, o Sr. Lobo poderia talvez ser acusado na esfera cível por danos materiais, mas nunca pelo crime de tentar devorar os porcos. E digo mais: Talvez tenha sido o próprio Criador que, escrevendo certo por linhas tortas, fez com que o Sr. Lobo acidentalmente destruísse as frágeis casinhas e assim, os tenha alertado que deviam se proteger melhor. Agora, estão os três morando com mais segurança na casa de tijolos, unidos como irmãos devem ser, graças ao Sr. Lobo. Como sabemos, a floresta pode ser muito perigosa. Existem muitos animais carnívoros perigosos por aqui, não é mesmo Meritíssimo?
Constrangido, o Leão retruca: — Não estou aqui para responder suas perguntas, Dr. Carneiro.


Ao fim do julgamento, o Júri absolveu o Lobo por unanimidade. E na saída do tribunal, este foi agradecer ao seu advogado e à Sr. Vaca
— Obrigado, Dona Vaca e Dr. Carneiro. Graças a vocês estou livre. Nem sei como agradecer.
— Só fizemos o que você nos obrigou a fazer, Lobo mau — disse o Dr. Carneiro — Agora espero que cumpra sua parte do acordo e liberte a Sra. Ovelha e o Bezerro.

Compartilhe essa obra

Share Share Share Share Share
Inspiração

A inspiração foram alguns contos de fadas famosos.

Sobre a obra

A intenção foi escrever uma história com animais vivendo situações típicas dos seres humanos (como acontece em histórias infantis), mas com um texto um pouco mais adulto, falando sobre um julgamento no Tribunal do Júri. Tentei usar mais diálogos e menos narrações.

Sobre o autor

Gosto de criar histórias e situações inusitadas e o incentivo do concurso contribui bastante para estimular minha criatividade

Autor(a): EMERSON DE SOUZA ALBUQUERQUE (Emerson Albuquerque)

APCEF/DF