Talentos

Comédia e Lágrimas

Délio já tinha passado dos cinquenta há um bom tempo. Aparência jovial, roupas leves, sapatos confortáveis, um sorvete de casquinha na mão. Fim de tarde, meio de semana, após o trabalho. Passeio rápido pelo shopping, fazendo nada, enquanto chega a hora de nada fazer em casa. Vitrines, gente passando rápido, gente passando lento demais, adolescentes em grupos, gargalhando como sempre, crianças gritando como sempre, celulares em punho como sempre. Parece que as pessoas saem para levar seus celulares para passear, pois a eles é que é dada toda atenção. Conversam, com eles, cuidam deles, mostram tudo a eles, mostram eles aos outros, ouvem tudo deles, pedem permissão a eles, protegem eles como se fossem o tesouro maior, e eles (os celulares) estão sempre à frente de qualquer outro bem, creio até valerem mais que algumas pessoas.

Misturado aos passantes, a observar, estava Délio, terminando o seu sorvete, e continuando seu passeio vespertino sem compromisso, pelos corredores do grande shopping. Como sempre, terminava indo parar na frente dos cinemas, pra ver o que estava passando. Várias salas, bilheterias com poucas filas, aquele burburinho característico da entrada, telas de led com os cartazes virtuais dos filmes, horários e preços. De repente, ele viu um anúncio em uma das telas: Festival de Comédias Musicais Antigas Hoje: Cantando na Chuva – Sala 12. Ao observar os horários, Délio viu que a próxima sessão seria dali a vinte minutos. Olhou a hora, olhou a máquina de venda de ingressos, sem ninguém comprando e foi lá comprar o seu. Fazia tempo que tinha assistido a esse filme, e, sempre que passava na televisão começava a ver, mas sempre achava que não era filme para passar em tela pequena. Aliás, pensava Délio, grandes musicais não eram pra se assistir em telas de tv, ou de computadores, muito menos em tablets e celulares, isso tirava todo o glamour do filme, além de ofuscar a grandiosidade das produções, que afinal de contas, foram feitas para exibição em sala própria de cinema, com escurinho, ótimo som e temperatura agradável. Délio entrou na sala de exibição. Ficou surpreso pela quantidade pessoas sentadas, numa contagem rápida achou que tinha mais de cinquenta pessoas. Escolheu um lugar o mais central possível, um pouco depois da metade da sala, com duas cadeiras



vagas entre ele e um casal de idosos e o outro lado da fileira vazio. Algumas risadinhas de um grupo de jovens lá da parte superior, barulho de sacos de pipocas, burburinho normal de antes de sessão de cinema. E a viagem imediata aos tempos atrás, embarcando nas lembranças de cinemas cheios, antes do filme começar, sala de paredes e teto decorados, poltronas vermelhas com o acento basculante, barulhos de muitas conversas, risos, alguém estourava um saco de pipoca vazio, alguns se assustavam, com licença, guarda meu lugar enquanto vou comprar bala, tem gente nessa cadeira aí? Luzes apagando aos poucos, três sinais sonoros de gongo, cortina se abrindo, silêncio tomando conta da sala aos poucos, projeção na tela, trailers, filme, emoções por conta de cada um.

Voltando à sala atual, projeção na tela, luzes apagadas, trailers, filme, imagem perfeita, cópia do filme ótima, som abrangente, emoção por conta de cada um. Délio absorve cada imagem, cada número musical, canta baixinho cada música, se entrega ao riso fácil e descobre que pode viajar ali mesmo, se deixando levar nas ondas sonoras e imagens coloridas, bailando, flutuando... sentindo os pingos da chuva no rosto e os pés molhados, enquanto dança naquela noite, naquela rua, com a roupa encharcada, cantando Singing In The Rain. Ao final da cena, Délio tem o melhor ar de riso da sua vida, estampado no rosto, enquanto lágrimas de pura emoção brotam dos olhos, vindo do fundo da sua alma, trazendo toda pureza, paixão e encantamento que é possível ter do viver, lavando e levando tudo de ruim embora. Como se aquela chuva do filme, tivesse deixado tudo completamente limpo de corpo e alma. O filme vai terminando com o número musical final grandioso e cheio de cores e sons maravilhosos. “The End”. As luzes acendem, as pessoas começam a sair e Délio chora de felicidade, sentado no meio da sala de cinema. O casal de idosos sai pelo lado da fila sem passar por ele e a senhora olha pra trás e volta até Délio, para ao lado dele, toca no seu ombro e pergunta - Moço, posso ajudar em alguma coisa? O senhor está bem?

Délio se assusta um pouco, olha para senhorinha e sorri – Estou bem sim, obrigado, só lembrei que estou feliz.

Ela sorri delicadamente, aperta seu ombro suavemente e diz baixinho ao ouvido de Délio - Entendo você, eu também estou. Fiquemos bem.

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Inspiração

Uma boa lembrança dos filmes musicais antigos, com sua mensagem simples e direta.

Sobre a obra

Crônica rápida, sobre um momento vivido e observado.

Sobre o autor

Escrevo por pura diversão, Seja brincando com as letras, inventando palavras, transcrevendo sentimentos, "introspectando" ou não. Me expondo quando é possível, me permitindo sempre comigo mesmo, aberto às experiencias de arte em todos os campos que a arte nos permite. Sempre.

Autor(a): LUIZ ITAMAR BEZERRA CAVALCANTI (Ita)

APCEF/PB