Talentos

LINHA 3422

Linha 3422

Saltei duas paradas antes para pôr meus pés naquele chão novamente. Correu um frio na barriga, um solavanco no coração que ficou quase parado. Duas quadras depois seria possível ver as velhas ruas, algum rosto conhecido, sentir o cheiro das folhas secas caídas do topo da amendoeira e percevejos espalhando urina no ar e no chão. Mas não. Só ouvi buzinas, carros, gente apressada e o lixo espalhado no chão. Tudo estava muito mudado.

O jeito foi voltar pra dentro do ônibus. A sorte foi que vi Nigritinha chegando. Fiquei contente, achei que fosse me ver.? Em vez disso, subiu os degraus, sentou num banco depois da borboleta e ficou olhando, ora pro tempo ora pro chão. Seus cabelos é que estavam um bocado brancos e a boca trazia um bigode de vincos que lhe tomavam a cara até o coração. O olhar longe, triste, inerte, revelava que nada tinha acontecido desde a última vez em que tínhamos nos visto, fazia um tempão. Um tempo puído que lhe deixou amarguras na feição. Parecia sem vida, perdida; um poste na arquibancada rodando por horas num lotação.

Deixei tudo em suspensão até começarem os alaridos; vinham de toda parte. O primeiro entrou e foi logo se ajoelhando. Falou de todos os males e pediu dinheiro. Funcionou. Recebeu um monte de moedas e talvez recebesse mais se não quisesse nos engolobar de qualquer jeito com aquela pressão.

Nem deu tempo pra pensar. Logo, havia outro, e mais outro. Parecia que eram milhões. Aos gritos... Vendiam tudo aos gritos. Aqui e acolá, pediam moedas em troca de quaisquer coisas que pudessem nos mostrar na palma da mão. Os mais exasperados faziam cascaria se disséssemos não. Quando me? espantei não havia mais ninguém. Nem Nigritinha, que dera um jeito de sumir dali sem deixar rastros. Mas ainda alcancei seu vulto, cabisbaixo, dobrando a esquina, sumindo rumo à solidão. Com sorte, talvez tenha encontrado a paz em algum rosto não estranho que pudesse lhe consentir compaixão.

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Inspiração

Uma viagem de ônibus faz o personagem tentar regressar no tempo.Não conseguindo isso, ele se depara com estranhamentos de outros personagens que povoam o dia a dia de uma viagem de ônibus.

Sobre a obra

Linha 3422 se classifica no gênero short story. É pois um micro conto que tem exatamente o folego de uma viagem de ônibus. Seus personagens se expressam a partir da visão do narrador em situações embaraçosas ocorridos no trajeto de uma linha de ônibus.

Sobre o autor

Gosto de literatura, do jogo de imagem que as frases podem conceber e fazer com que o leitor veja a partir de imaginação.
A linguagem poética, assim como a do conto, se presta a dialogar ora pelo ritmo da música, ora pelo conteúdo imagético.

Autor(a): CELIJON ABREU RAMOS (CELIJON RAMOS)

APCEF/MA