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A FÁBULA DAS AREIAS

A Fábula das Areias

Naquela noite ninguém desconfiava que algo muito grave, estranho mesmo, estava para acontecer na cidade que cismava viver num mundo de magia. Ali todos foram criados com medo da serpente que crescia sorrateira, arrastando o rabo, ameaçando afundar a ilha, caso a cabeça cheia de chifres pontudos um dia se encontrasse ao rabo.

Nesse dia apavorante tudo iria pelo ralo. A cidade sucumbiria, desapareceria para sempre sem deixar nenhum rastro. Assim, prestavam atenção a quaisquer estrondos ou movimentos repentinos, ficavam atentos a possíveis tremores de terra que, por certo, seria o aviso de que tudo estava por se acabar, muito embora acreditassem na chance de alguém salvar a própria pele (e o que mais fosse possível) diante do pandemônio que se formaria se o pior viesse acontecer.

Passaram-se quatro longos séculos e nada da profecia se realizar. Como sói acontecer nessas situações, todos relaxaram diante do perigo. Mas, por via das dúvidas, tiveram o cuidado de deixar a polícia e o corpo de bombeiros de prontidão para lhes proteger ante qualquer rebuliço raivoso da serpente malvada que estava prestes a morder o rabo.

Naquele meio tempo, o buchicho crescia e o mito, que dizia que a cidade ruiria, se espalhava. A estória tomou conta da alma citadina e foi usada para dissuadir a atenção dos moradores a cerca dos perigos iminentes que por ali rondavam.

Foi por essa razão que não discutiam os problemas de ordem prática. Se faltassem árvores, se as ruas estivessem pavimentadas, limpas, se todos pudessem ir e vir de um lugar ao outro sem grandes dificuldades... Nada foi conversado. Por isso ninguém jamais foi cobrado e a cidade viveu num sonho encantado, onde tudo se resolvia no plano imaginário, amparada no passado que alguns fizeram acreditar ser maravilhado.

Dessa forma, calhou bem a estória da serpente encantada, pois vivendo enfeitiçados, achavam que bastaria o olho esperto da polícia a lhes socorrer para a vida seguir feliz e calma.

Ninguém prestou atenção, mas o vento estava muito estranho, soprando forte e uivando praquelas bandas. Não assuntaram sequer que a ventania pudesse ter parte com os encantos da serpente malvada. Mas, por vezes, ficava calmo, soprando como se quisesse fazer carinho nas mulheres cor de jambo com cheiro de mar nos cachos, e ficava brincando com o desalinho negro das madeixas que escondiam olhares travessos e risos cálidos.

Mas noutras vezes ficava bravio. Furioso, judiava dos barracos até arrancar-lhes os frágeis telhados.

Nessas noites de céu escuro, os pescadores ficavam em torpor e não entravam nas bianas para pescar. Aturdidos, ficavam observando o banzeiro, a ventania do terral furioso uivando sobre os barcos ancorados, querendo quebrar-lhes os mastros. Quando cismava de soprar assim não tinham escolha; entravam no mar revolto, afinal, se a pescaria arruinasse, a fome grassaria sem dó e nem piedade. Mas, o vento furioso não cessou. Sem perceber, pouco a pouco, a cidade começou a receber lufadas vindas de todos os lados numa conjunção infernal dos desígnios da natureza. A ventania rodopiava e uivava noite adentro, assobiando forte nos ouvidos, trazendo pavor àquela gente que vivia cercada pelos mares.

Trazida por Deus ou o Diabo ninguém sabe de onde, a areia fina começou a ganhar espaço. Agora invadia praias, vilas e favelas, engolindo sem cerimônia o que visse pela frente. Ninguém tentou varrê-la das portas das casas nem dos bares. Nenhuma reação foi esboçada. O prefeito foi quem primeiro deu de ombros, tinha coisa mais importe a fazer que endoidecer tirando monturos de um lado para outro sem saber aonde guardar tanta areia fina e alva.

Conduzida pelo vento buliçoso a língua de areia crescia. Criou raízes e asas esvoaçantes exigindo do irmão vento que a levasse para mais e mais longe. Por último, desenvolveu apetite especial por tudo que o bicho homem resolveu criar ou que encontrasse pela frente. Faminta, engoliu ruas, calçadas, avenidas, carros e favelas. Logo chegou a vez dos supermercados também serem devorados e a fome campeou entre os moradores mais abonados.

Pouco a pouco, a cidade foi devorada por uma montanha de areia que se movia rápida que ninguém teve tempo de pôr sequer o nome. Inacreditavelmente, a população estava sendo soterrada; foi dizimada sem dizer sequer um ai. Acreditavam simplesmente estar a salvo vivendo na felicidade, a não ser pela possibilidade da danada da serpente um dia vir a morder o rabo. Todos foram mortos, engolidos pela areia fina e asfixiante sem esboçar um único gesto. Exceto Zé Silva que, com os cacarecos nas mãos, vestido num cazumbá multicor, cruzou em disparada rumo ao Estreito dos Mosquitos, atingindo o continente na esperança de refundar um dia a civilização que cria piamente na lenda da grande serpente encantada.

Soube-se depois que o mito apenas fora usado para desviar a atenção e ludibriar a boa fé daquela gente que vivia rodeada de areais e mares. Impunemente, o mundaréu de areia deglutiu ruas, casas, palácios e a vida da cidade cuja história alguns fizeram engodar como se fosse um primor da humanidade. Feneceu por não saber que se nutria de mitos e veleidades, restando-lhe no final apenas desespero e escombros. Virou um verdadeiro deserto de risos e sonhos.

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Inspiração

A ideia principal é a de criar uma fábula a partir da lenda da serpente encantada que o imaginário popular afirma morar sob a ilha de São Luís do Maranhão. Através do linguagem do conto, denúncia o descaso com a cidade que se vê engolida pela areia sem que as autoridades nada façam.

Sobre a obra

A ideia principal é a de criar uma fábula a partir da lenda da serpente encantada que o imaginário popular afirma morar sob a ilha de São Luís do Maranhão. Através do linguagem do conto, denúncia o descaso com a cidade que se vê engolida pela areia sem que as autoridades nada façam.

Sobre o autor

Gosto de literatura, do jogo de imagem que as frases podem conceber e fazer com que o leitor veja a partir de imaginação.
A linguagem poética, e a do conto, se presta a dialogar ora pelo ritmo da música, ora pelo conteúdo imagético.

Autor(a): CELIJON ABREU RAMOS (CELIJON RAMOS)

APCEF/MA