Talentos

Jacaré

Jacaré

Primeiramente patenteio que o que o sucedido é o relato fruto da realidade mais verdadeira que se possa averiguar nesses sertões cobertos da areia mais branca e da água mais limpa e verdinha desse Araguaia, que é o que a gente encontra lá pro norte, saindo de Goiás e entrando Tocantins, já na divisa com o Pará. E que formosura!

Quanto mais vai subindo no mapa e descendo para o norte, mais o Rio vai crescendo, juntando os afluentes de águas branquinhas como o Cristalino, o Crixás, o Crixá-Açú, dentre outros, e a lama que veio junto das águas principalmente do Garças e Rio Vermelho, já foram caindo para o fundo, decantando aos pouquinhos, de forma que, pleonástico para ser claro e enfático, o Araguaia nessas bandas é de uma lindeza que é demais da conta.

Naqueles tempos não tinha esse negócio de ficar regateando quantidade de peixe e nem tamanho também. A gente fazia conforme a consciência deixava. Consciência e gelo, que era regrado. Alguma coisa também púnhamos para escorrer e secar no sal. Mas a régua do discernimento nossa era curta e não tinha desperdício nem depredação também. Era só um quarto de saco de aniagem para cada companheiro, e estava bom. Era fartura com responsabilidade.

Nosso ponto predileto era a Barreira de Campos ou a Barreira Branca, em Araguacema, ali onde ela emenda com Caseara, no Pará. Nosso “recepcionista” era o Crioulo, “Mulato forte, alegre destemido”. Cabra nativo, cerne puro, duro como aquelas tapiocangas esparramadas no meio do Rio, que a natureza põe no caminho para roer as hélices dos motores de popa, que custavam o preço de um fusca zero.

Também havia o Salim, fiscal do finado IBDF, que cansou, largou tudo, e apoitou naquelas beiras. Sujeito que devia pesar uns 120 quilos de uma mistura de angico com molho de peixe, esse turco catingava igual essa mistura mesmo. Mas era um instrumento do Governo Federal e que dava medo só do pisado. Usava uma calça cáqui enfiada na bota, que chegava no pé do joelho, com um facão de umas vinte polegadas atravessado de um lado e um “Ximite” 44, pendurado num cinturão cravejado de balas do outro. Aí você junta isso com aquele resto de cabelo encaracolado, nascido do meio da cabeça para trás e você obtém a fórmula exata de alguma coisa que você não vai querer ver enfezado de jeito nenhum.

Acontece que os ganhos dos dois eram minguados. Por ali não tinha comércio e nem emprego, e por isso disputavam cada centímetro de nossa benevolência quase no tapa, já de cálculo na bonificação do final da tarefa. Parece, inclusive, que Salim do IBDF só recebia a alcunha, porque parece que já tinha sido demitido por algum motivo que envolvia sumiço de gente, e o Crioulo, além da pesca e da caça, era perito na arte de aviar encomendas de almas. E não é com reza não. Ninguém sabia direito. E nem devia espichar assunto.

Os dois viviam ali, no meio do nada, rodeados de água, areia, céu e bicho. Pesca mesmo, acho, era bico.

Eu estava ali naquelas brenhas de mundo, no alto das minhas convicções de pós adolescência, na plenitude da força física e da curiosidade do mundo, disposto e predisposto a ver e ouvir todas as histórias. Leitor sôfrego de tudo que me caísse na mão, de enciclopédia a bula de remédio, não tinha nada que escapasse. Gostava de aprender.

Naquela pescada, além da doutrina pescaria, eu também estava desenvolvendo minhas capacidades no campo da pilotagem náutica que, com o decorrer do tempo, se tornou uma verdadeira paixão para mim, que apesar de oficialmente ser um mero arrais, já possuo experiência de navegação marítima. Marinheiro do sertão.

Dentre as habilidades que precisava desenvolver, havia a de ser “operador de vídeo” como assim adjetivava meu mestre, Edvar Flores, professor universitário, catedrático de economia, pai de meu amigo Hélio, e que consistia, essa capacidade, na técnica de operar o “sealed bean”, ou farol manual ou, simplesmente, “silibim”, usado para as viagens noturnas em busca de cardumes ou alguma outra presepada tardia.

Edvar trouxe na bagagem, desta feita, uma cartucheira 12, de dois canos, coronha de prata trabalhada, linda de morrer, porém virgem ainda. Não tinha matado nada. Desportista congênito, sempre foi apaixonado na arte do tiro, ao que, porém, apesar do esforço, não conseguia obter grandes resultados com as latinhas de alvo. Para se consagrar, costumava liquidá-las a “queima-roupa” mesmo. Pelo menos provava a eficácia do equipamento.

Além de não ser o melhor do mundo dos peritos atiradores, teimava em não usar os óculos, que ficavam pendurados num cordão no pescoço e, cuja falta, o deixava com o olhar meio zarolho, no que torrávamos a sua paciência, alegando ser uma vantagem ilícita, já que sua provável presa não saberia para onde ele estava olhando e se o problema era com ela mesma. Enfim...

Numa noite de lua boa, acabamos saindo nós quatro, Crioulo, Salim, Edvard e eu, para uma ronda de canoa, com o Edvar paramentado de chapéu de caçador e todos os demais quesitos que o transformavam na própria figura do próprio Daquitári, somava-se a presença do Crioulo e do Salim, todos esses elementos convertiam o nosso passeio em uma verdadeira expedição.

Eu era o piloteiro e operador de vídeo. Era a glória. Extremamente importante.

Navegamos dentre uns canais atrás da Ilha de Campos, de frente ao nosso acampamento sob o comando do Crioulo, ou do Salim, e sempre do Edvar. Imagina a dificuldade de entender e seguir um rumo... Verdadeiro samba do crioulo doido, com o perdão do trocadilho.

Eu devia mirar o foco do “silibim” para o rumo de onde os braços de cada um apontasse, tentando aproximar de algum bicho, para a mira da máquina fotográfica do Edvar, que ficava em pé na canoa fazendo mira, regulando foco e o flash. Além do facho de luz, eu devia apontar a proa da canoa na direção, regulando a velocidade, que não podia ser muita para não espantar, e nem pouca para o nosso modelo animal não fugir da fotografia que nunca prestava. Invariavelmente somente o breu não escapulia.

Em uma aproximação dessa, num pequeno canal e no meio duma garrancheira espinhenta de saram, Edvar sussurra para diminuir velocidade... mais devagar... freia!! Como é que freia uma canoa, meu Deus do céu? Edvar em pé, ao invés da Olympus de estojo de couro, pegou a famigerada cartucheira 12 de coronha de prata. Fez mira. Salim e Crioulo fizeram posição de tocaia, mais agachados que sentados, prontos, com os ganchos na mão.

De repente “PUM”!!! Virgem Maria! O tiro de uma arma dessa num silêncio daquele, com o ouvido acostumado a escutar muriçoca zunindo de fora da barraca é um estouro fenomenal! Junte-se a isso o banzeiro de água que subiu, produzido não sei se por causa do tiro, ou de rabanada de bicho... mas... foi água para tudo que é lado, ainda mais que, imediatamente, Crioulo e Salim pularam na água também. Não sei se era assim mesmo, ou se estavam ansiosos ou assustados também, mas largaram os ganchos e entraram na água.

Credo!!! Tive que gritar para o Edvar não atirar, que o povo tava na água, mas acho que não deu tempo ou ele não ouviu, porque arrastou o dedo no gatilho de novo no rumo da fervura de água que nessa hora já estava meio na lateral do barco.

E a folia dentro d’água não parava, era homem gritando não sei o quê com não sei quem e afundava um e subia outro e eu não via nada não. E o “silibim” na mão, buscando...

De repente pá! Um jacaré de quase meio metro só de cabeça e uma boca aberta com um conjunto de quase umas duas centenas de dentes, caíram ali, quase no meu pé. Aquele bicho veio parar dentro da canoa. Da água jogaram ele lá dentro. Edvar pulou para o bico e eu para a popa da canoa. Fiquei acuado ali atrás do banco do piloteiro, naquele espaço que diz é para pôr tanque mas que não cabe tanque nenhum, com o silibim caído perto, mas o fio enfiado embaixo do mostro que virava cabeça para um lado e abria a bocarra para outro, tentando morder alguma coisa, que eu acho que ali no caso era eu mesmo. Sacudia a canoa e jogava tudo para dentro d’água...

Para mim ali mesmo eu ia. Minha última porção de macheza já tinha gasto pelejando recuperar o “silibim” puxando pelo fio e tentando pensar em alguma coisa que prestasse, lembrando, arrependido, pedindo a benção da minha Mãe, e chamando por algum santo que estivesse de plantão ali para acudir naquela hora.

Já ia pulando na água quando o Salim se levantou na beirada da canoa, sacudindo tudo, e me jogando na água, o que acabou me cassando a decisão de pular da canoa ou não. Fui.

Voltei. Quase do mesmo jeito que caí, subi na canoa de novo. Deus me livre! Ali estava infestado de dentes e ferrões de tudo quanto é bicho! Praticamente nem molhei. De água.

Nisso eu vi o facão do Salim descer no pescoço do baita. Quase arrancou a cabeça do bruto.

Aí, serenou... mais ou menos, porque o rabo ainda mexia. E era grande o bicho! Media uns dois metros e meio. Ocupou o terço posterior da canoa e chegando até o bico, onde o Edvard estava sentado na ponta. Branco. Atônito, com a cartucheira no colo, as duas mãos segurando na quina de alumínio. Óculos pendurado para trás, chapéu pendurado pra frente. Máquina fotográfica ninguém nunca sabia dizer.

Crioulo, rápido, pulou para dentro e sentou em cima do bicho. Salim subiu também. Percebi que o local que estávamos era meio raso, dava no peito do Crioulo e na cintura do Salim. Devia ter pulado na primeira e poupado minha Mãe das bênçãos que me deu sem saber e que, graças à Deus, até hoje ainda não sabe. Acho que lhe economizei uns cabelos brancos.

Nunca tinha experimentado ainda, tinha somente dezesseis anos, mas virei um gole da cachaça que tava derramando no estrado da canoa. Aí queimou a boca, a garganta e o estômago. Com a “paquéra” pegando fogo, arrecadei de volta o “silibim”. Sentou todo mundo, liguei o motor e voltamos para o acampamento.

Chegamos, descemos, descarregamos. Os homens para um lado e os meninos (eu) para outro. Aí foi contar o caso, da mira, do tiro, do cartucheira, cartucho com balote, cartucho sem balote, do segundo tiro, que foi o que acertou, espingarda boa demais, etecetera e tal... “Será que a Olympus não está no fundo da canoa?”.

Eu, no meu canto, tomava água e prometia que aquela não era a primeira vez que punha pinga na boca, era a última. Fazer uma caçada também. Promessa essa que acabei repetindo mais algumas vezes. A da pinga, porque caçar eu nunca mais fiz isso não. Enfim, tomava água e brincava com uma lanterna, sentado num tamborete e bisbilhotando. Interesse científico e artístico, pois era um portento da natureza ali na areia que estava ali estirado. Eu sentia um remorso enorme, mas enfim, acho que nem o próprio Edvar esperava que aquilo fosse acontecer.

De repente minha curiosidade se aguçou mais. Olhei... revirei e não vi. Não conseguia ver o buraco por onde havia entrado o tiro. Olhei de novo, revisei, conferi e nada. Tinha alguma coisa errada. Chamei meu Pai, que estava deveras ocupado judiando do Edvard, que teimava em arrastar papo da espingarda, e os demais, todos envolvidos em assuntos de culinária, se fritava, assava ou fazia molho.

“- Pai, onde está o buraco da bala?”

Solícito e cuidadoso comigo, meu querido Pai, deixou seus afazeres momentaneamente e veio acudir a família. Procura daqui, procura dali e nada. Chama o resto da turma. Pega lanterna, clareia dum lado, vira do outro e nada. Concluímos: O bicho morreu de facão.

É, eu devia ter pulado mesmo. Da próxima eu pulo.

A partir daí, o que já era uma festa virou um pagode de gozação e carne frita, pinga e cerveja... Um pampeiro. Nessa altura o Edvar não tinha para onde correr das propostas de compra se seu maravilhoso equipamento que só servia para fazer peso.

O amigo que me lê vai pensar que isso é corriqueiro. Passa todo dia o dia inteiro nesses canais de aventura dos canais pagos de tevê. Mas naquela época jacaré mordia. Naquela época não tinha esses programas e nem nós e nem os bichos tinham visto algum desse especialistas em sobrevivência funcionando

Voltamos para a casa e esse episódio ficou na memória dos companheiros que estavam presentes nessa noite, porque toda tentativa de contar o acontecido nas rodas, acabavam classificadas de embuste, fantasia e história de pescador. Se você que me lê nesse momento for do ramo, sabe que nessas beiras de rio acontece coisas que só quem é da beira do rio sabe.

Alguns anos mais tarde, retornamos para o mesmo ponto do Rio e não encontramos o Crioulo e nem o seu Rancho. Do Salim, a notícia era a de que tinha morrido de “nó nas tripas”. O Rio estava mais baixo, difícil de navegar. Peixe? nada. A Cidade estava movimentada. A estrada, cujo entroncamento vinha de Paraíso do Norte, estava recebendo preparo para asfalto e o povo mais sestroso e menos acanhado. Tinha perdido aquela inocência que a gente encontrava quando chegava, dos meninos rindo nervosos e escondendo de vergonha. Estava tudo diferente. Era outra Cidade. Éramos outros homens, e o Rio também.
Fim.

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Inspiração

Casos e causos de pescaria.

Sobre a obra

Um fato acontecido, com um companheiro que, infelizmente, já não está mais entre nós.

Sobre o autor

Gosto de ler. Tento escrever.

Autor(a): ROSINVAL ALVES DA ROCHA JUNIOR (Rosinval Rocha)

APCEF/GO