Talentos

Crônica de um APP Bem Passado

Estive esses dias pensando na grande revolução que se operou na Comunicação nos últimos anos e, por que não dizer, na vida das pessoas, com a introdução dos aplicativos de mensagens e redes sociais. Sobre isso, gostaria de compartilhar com vocês algumas percepções que me parecem intrigantes.
?Há alguns poucos anos, nós precisávamos chegar em casa ou no trabalho para saber das novidades. Tínhamos que ligar o computador, sentar diante dele, para então ver a caixa de entrada do e-mail. Imaginem antes, quando as notícias chegavam nos jornais diários e revistas semanais ou mensais. Havia também os Correios. Somente em casos de extrema urgência utilizávamos o telegrama. Lembram? Hoje a comunicação vai com a gente até para o banheiro, tudo tem cara de urgente e acabamos seduzidos por esse apelo.
? Pelo que tenho visto, a caixa de entrada se mudou para as mensagens de WhatsApp, aquele do ícone verdinho. O aplicativo verdinho aqui no Brasil mudou a forma de fazer algumas atividades que antes demandavam presença física, como reuniões, vendas e até consultas médicas.
?Nos grupos do WhatsApp aparecem notícias de toda ordem, de receitas culinárias e correntes de oração a solução de crimes. Com as denúncias de mau uso do dinheiro público, aparecem logo os que pregam revoluções e querem fazer justiça com as próprias (...) palavras ou imagens, no caso. E querem nos dar ordens do tipo: vamos todos pra tal lugar ou divulgue isso para todos os seus grupos. Exagero meu? Vejamos: o APP verdinho se viu obrigado a limitar a 5 o número de destinatários para os quais o usuário pode reenviar uma mensagem pronta, como forma de reduzir a velocidade de propagação de eventuais “fake news”. Era necessário. Conheço gente que parece que mora em frente a um teclado.
? Sentimentos extrapolam a tela e passam a dominar o operador: sentimentos de rejeição, quando um “post” não tem “likes” imediatos; alegria e o orgulho, ao ver uma divulgação “bombando”; raiva ou ódio, quando alguém discorda ou se contrapõe à mensagem enviada. Veja onde chegamos! Transfiro para um conjunto de pessoas a decisão sobre o meu estado de espírito.
?Um efeito colateral das discussões de grupos é a ampliação da polarização, ou dualidade. Quase tudo é de um lado ou de outro, de um time ou de outro, certo ou errado, de direita ou de esquerda. Inconscientemente vamos classificando fatos e pessoas. A capacidade crítica e isenta de paixões e a ponderação estão ficando raras.
? Outro cuidado que devemos ter é com a cultura do superficialismo e da generalização. Como temos facilidade de acesso a consultas no Google, recebemos a informação pronta para fundamentar a nossa opinião (nossa?). Basta um “copiar-colar”. Todo médico hoje é coadjuvante no diagnóstico, pois ele quase sempre é a segunda opinião. A primeira veio das ferramentas de busca. Nós consideramos inquestionável o que está escrito lá e em alguns assuntos isso pode ser obstáculo para uma percepção correta da realidade, pois os algoritmos por trás do uso, vão nos levando a uma visão seletiva, já que eu vou sendo conduzido a sites e pessoas que pensam igual a mim. E aí é que está o perigo, pois não há a figura do contraditório, que seria condição para o diálogo aberto de ideias. Se por um lado ali eu encontro a munição de que eu preciso para argumentar (guerrear), eu perco a oportunidade de conhecer a outra versão dos fatos. Mas o que importa? Não quero nem saber se é fake ou não. Tenho que descontar minha raiva e fazer com que minha opinião ganhe a briga no grupo da família. Você percebe isso em algum de seus grupos?
? O uso maciço dos aplicativos de mensagens vai aos poucos influenciando a linguagem escrita, pois as gírias e abreviaturas viram gramática oficial e vc chega a ter vergonha de escrever “você” por extenso. A propósito, sobre neologismo, você já teve a curiosidade de ver no Google o significado do verbo Googlar? É, já virou verbo. Não sabia? Nos países de língua inglesa já existe um verbo novo, “to text”, para indicar a ação de escrever mensagens em smartphone, de tão comum que ficou ver pessoas andando (ou até dirigindo) e digitando simultaneamente, com risco de enviar mensagem ou foto para um destinatário errado, cair nas armadilhas do imprevisível corretor ortográfico ou de se acidentar por distração. Você já sentiu a amargura e arrependimento de quem mandou uma mensagem errada e não conseguiu mais apagá-la? E de quem bateu com o carro, porque estava online?
?O padrão de velocidade dos aplicativos contaminou o mundo real e, não raramente, passamos a querer quase tudo instantaneamente, inclusive em relações humanas, numa transposição perigosa do virtual para o real. Hoje ninguém consegue esperar na parada pelo ônibus ou táxi (táxi?). Quero resultados imediatos. É melhor fazer uma lipo do que malhar todo dia.
? Minha conclusão, ao final desse debate intelectual e introspectivo, é de que essa tecnologia pode ser muito bem-vinda, se utilizada com responsabilidade. Posso ser eu mesmo quem decide sobre como fazer bom uso disso tudo. Temos agora uma memória auxiliar, um copiloto, achamos facilmente os melhores locais, fazemos reservas, compramos sem sair de casa. Tudo no smartphone. Acredito no Tinder, no carro autônomo e confio no futuro para o algoritmo (futuro?). Com o uso de redes sociais na palma da mão, há uma maior fiscalização do cidadão em relação aos serviços e as empresas passaram a se preocupar mais com o atendimento e com a “experiência” do cliente, em busca dos likes e dos comentários positivos, que automaticamente ficam indexados na rede.
?Ah... você deve estar se perguntando: E o título da crônica? Que título é esse? Calma (como calma?!), vou explicar: estava finalizando a ideia para o título da crônica, quando o garçom perguntou na mesa se o filet era ao ponto ou bem passado e no mesmo instante eu recebi a seguinte mensagem enviada por um amigo: “Tá ligado que a mata era verde né?” Sem querer respondi ao garçom: “o meu é verde”. Kkkk. Tudo se encaixou. Eu mesmo me peguei no flagra.

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Inspiração

Várias vezes no dia passamos a mão no celular para uma conexão com o mundo virtual. Isso é muito bom, por encurtar distâncias, expandir nossas capacidades e tantas outras vantagens. Mas é também perigoso. Paradoxalmente, esse gesto nos desconecta, pois durante o uso perdemos a consciência do aqui e agora. O mau uso pode trazer algumas complicações.

Sobre a obra

Crônica de um APP Bem Passado apresenta minhas reflexões sobre o uso da tecnologia e sobre situações cotidianas nas quais o uso excessivo e automático pode ser prejudicial. Coloco no texto a minha visão de como enfrentar isso, com o objetivo de provocar a reflexão do leitor sobre a possibilidade de tomar as rédeas da situação.

Sobre o autor

Assim como nos trabalhos de artes visuais, também procuro as situações cotidianas na literatura e nelas busco entender a arte da vida em movimento e compartilhar a minha visão com o leitor.

Autor(a): LUIZ HENRIQUE LINS BARROS DE CARVALHO (Luis Lins)

APCEF/PE