Talentos

OLHANDO A VIDA E VIVENDO

OLHANDO A VIDA E VIVENDO

Percorrendo a estreita estradinha de areia que me leva até a praia, vou fazendo uma espécie de exercício mental de criação. Nada voluntário. Penso em palavras que possam expressar uma emoção qualquer, depois digo em voz alta, repito, vejo como soa. Se me agrada, reservo em algum cantinho da memória, para um provável uso futuro. Nunca sei quando vai surgir a vontade. E sempre digo, se pensarem que sou maluca, azar. Talvez seja mesmo. Cada um com as suas loucuras e a minha é essa. Uma delas, deve haver umas quantas mais que agora não lembro e nem quero. Mais uns passos e ali está o mar, majestoso e encantado, sugerindo o ato de sentar e apreciar, os pés afundados na areia ainda morna. Cá estou, cabelos a voar na brisa da tarde, apenas contidos por um chapéu de palha. Nas mãos o livro de crônicas, na bolsa vermelha o celular, a câmera fotográfica, o caderninho espiral e uma caneta sem tampa. Óculos para ver de perto, já necessários quando se tem sessenta, e está montado o quadro. Leio. A voz agradável da moça do chapéu psicodélico me desperta do mergulho e tiro os olhos do livro para dar-lhe atenção. Traz nas mãos um mostruário de artesanato, onde estão pendurados anéis, colares, brincos e tiaras de macramê. A pele dela tem a cor de cuia e os olhos são de um azul de doer. Pela fala, não parece ser daqui, mas não consigo decifrar de onde possa ser. Elogio o trabalho, é tudo muito bem acabado e mostra criatividade. Ela agradece com um sorriso muito branco e segue o seu rumo a deslizar pela areia, parando de vez em quando, a cada novo grupo de pessoas, que já não são muito àquela hora na praia. Não comprei nada, normalmente não levo grandes dinheiros quando vou à praia, mas até gostaria de ter ficado com alguma daquelas peças.
Quando ela se afasta, tiro a câmera da bolsa e tento focar o chapéu. Ah...aquele chapéu que me caiu no gosto desde o outro dia em que vi um rapaz usando um igual ali mesmo no centrinho da Barra. Tenho verdadeira tara por chapéus e por cachecóis e esta pode ser mais uma das minhas loucuras confessas. Mas o chapéu, pura verdade, é inusitado e posso jurar que está faltando na minha coleção. Volto ao livro, enquanto passa a moça do bolo integral e antes ainda, a outra dos panes rellenos. Uma coisa realmente incrível, Floripa toda, de sul a norte, anda tomada por argentinos e não só. Há uruguaios, ingleses, holandeses, australianos, americanos, finlandeses. No outro dia encontramos umas meninas de Israel na praia, a espremerem limões e passar na pele, como quem imagina que aquilo vá deixar os pelos do corpo loiros. Cada coisa, fazem estas criaturas! Tivemos que desencravar um inglês de emergência, que era o que entendiam, para dizer que aquilo manchava e até queimava a pele. Há gringos de todos os cantos. Ontem mesmo assisti a matéria no último jornal da noite, na TV. Se não estou enganada, Santa Catarina já é o segundo destino turístico no Brasil, só ficando atrás do Rio de Janeiro. Dá mesmo para ver. Mostravam a Barra da Lagoa no seu melhor e os depoimentos dos turistas. Uma beleza. Positiva é a troca de ideias, integração de culturas. O povo gasta aqui e isto quem não quer? O turismo traz futuro.Também tem o lado mau, os preços por aqui, desde que começou o verão, triplicaram sem dó nem piedade. É a safra deles, faturam para o ano todo, mas para quem mora aqui faz muita diferença. E caminhando pelo centrinho da Barra, ou pela Lagoa e mesmo outras praias, tem-se a nítida impressão de que estar em qualquer dos países vizinhos. Menos no Brasil, menos em Santa Catarina. Nos bares e em boa parte das casas comerciais já somos atendidos por argentinos e uruguaios. Bom para os turistas, que acabam por sentir-se em casa e retornam a cada ano em maior número. Estranho para os locais, que veem um pouco perdida a sua identidaDE.
O sol começa a esconder a cara atrás dos morros, não sem antes oferecer o espetáculo esperado. E os reflexos no mar são impagáveis. Hora dourada, onde as fotografias se põe mágicas. Lembro que ali ao lado da ponte azul está o Butiquim. Impossível não ir ao pastel de queijo. Guardo o livro, recolho a cadeira e levo a câmera a tiracolo. Nunca se sabe quando vai surgir um quadro emoldurado por estes cenários. No caminho encontro a moça do chapéu, que caminha com outra vendedora de artesanato. E há também um rapaz que, pedindo para que façam pose, bate a foto e diz:
_ Diretamente de Goiânia para as praias gaúchas!
Gaúchas? E eu pensando que estava em Santa Catarina. Uma outra moça, que não a do chapéu e nem a companheira, caminha atrás de mim e me alcança ao sair da areia. Vejo que faz parte do grupo e não resisto.
_ Sou maluca por aquele chapéu.
Ela fala que é lindo e que há para vender. Chego perto e olho detalhadamente o chapéu de feltro verde na cabeça da moça de olhos azuis.
_ Mas o que é este chapéu? É um chapéu de que?
_ De duende. É lindo, não é?
_ Sim, lindo, vi no outro dia um rapaz que usava um igual. E fazes para vender? Eu coleciono chapéus.
_ Claro! Faço um, vendo, faço outro.
_ Eu quero! Podes vender este? Mas tenho que pegar contigo amanhã, hoje não trouxe dinheiro.
_ Posso sim, amanhã vou estar aqui pela praia de novo. São cinquenta reais.
Enquanto combinamos, aproxima-se o rapaz que imagino ser o seu companheiro, com duas crianças que devem ser filhas. O mesmo que vi no outro dia usando o tal chapéu de duende. Todos sorriem, são muito simpáticos. Depois seguem a caminho do mar.
Já sentada à mesa do Butiquim, confirmo o que já sei desde que cheguei de volta à Barra. Este pastel, feito na hora, é mesmo uma delícia, talvez um dos melhores da ilha, e vai muito bem com uma cervejinha gelada. A brisa que vem do mar e este visual de paraíso fazem com que a gente se pergunte se realmente merece tudo isso. Pois merece. A câmera agora foca o menino de cinco ou seis anos que está sempre a jogar a tarrafa perto do cais, a estas horas do dia. Volta e meia procura com o olhar o avô, sentado no interior da peixaria em frente, na intenção de conferir se tudo está como deve ser na sua atividade de gente grande. Fico encantada com a destreza, parece trazer de berço todas as manhas dos pescadores de toda a vida e nenhum medo. O canal que liga a Lagoa ao mar é praticamente o quintal de casa dessa gurizada, nasceram e cresceram ali.
Antes de ir para casa, entro na peixaria e escolho uma tainha para o almoço de amanhã. Não é fresca, ainda não é altura delas, mas tem bom aspecto e vai ser assada na brasa.
Ganho a rua com a sensação de ter lido isso tudo em um livro qualquer.
Vida plena, isso é o que é. E se não for, deve andar bem perto.

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Inspiração

Ando pela vida a observar atentamente tudo o que me rodeia. E me encantam as coisas simples, as pessoas simples, a vida em sua essência. Mais do que encantar, me dão vontade de contar o que vejo e escuto em minhas andanças. Tudo e qualquer coisa pode virar um “escrito”, como diz a minha mãe. Sendo assim, ando por aí a escrever, pura e simplesmente.

Sobre a obra

As palavras vão surgindo e se encaixando nas cenas. Normalmente testo a sonoridade e quando começo, quase nunca tenho a ideia de qual será o rumo. O acontecimento dá o movimento à escrita, seguindo o que se passa em volta. Ao final, tenho um texto real.

Sobre o autor

Gosto de ler, gosto de escrever. Na adolescência fazia uma viagem diária de trem para chegar à escola, que ficava em uma cidade próxima. A magia da viagem, somada ao fato de gostar de observar tudo em volta, me fizeram tomar gosto pela escrita. Aos sessenta anos, continuo contando as coisas do cotidiano e expressar-me assim é algo que me encanta.

Autor(a): HELOISA HELENA FERREIRA FLORES (HELOÍSA FLORES)

APCEF/SC