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CENAS DE UM BAIRRO EM LISBOA

Cenas de um bairro em Lisboa

A caminho do ponto de ônibus, passo quase todas as vezes ao lado da pastelaria Torp, ali na Bobadela, que é como uma vitrine de bolos, doces e guloseimas. Junto à esquina, vejo através do vidro um grupo de velhinhas a tomarem o pequeno-almoço. Todas muito arrumadinhas, cabelos arranjados, batem o ponto diariamente na pastelaria do Manel, que já trabalha ali, dizem, há pelo menos uns trinta e quatro anos. Noutro dia tive pena de não estar com a minha câmera à mão, para registrar a cena. As seis, todas bem sentadinhas – os lugares são os do costume, sempre os mesmos – com as suas caixinhas verdes de medicamentos ao lado do guardanapo, absolutamente iguaizinhas. A um comando qualquer, ainda que invisível, ou como por algum ritual, as caixas são abertas todas ao mesmo tempo e elas engolem cada uma o seu remédio. Aqui o pequeno-almoço é quase um acontecimento. As pessoas costumam encontrar-se no café e acabam por formar pequenos grupos de frequentadores tradicionais, como uma família a compartilhar as manhãs da vida. Ali assuntam tudo o que acontece no bairro, talvez no país ou no mundo. Então cada um vai aos seus afazeres, porque o dia só começa depois deste ritual. A tal vida de café, tão conhecida dos portugueses.
Hoje pela manhã havia um fato novo. Um senhor estava à mesa com elas e, acreditem, tinha lá também a sua caixinha verde de medicamentos, que penso ter sido oferecida a todos pelos simpáticos atendentes da Farmácia Central, na rua de cima. Como se a senha ou condição para participar do grupo fosse a tal caixinha. O comprimido da pressão outro para o colesterol talvez um diurético e algum outro para o coração. A rotina da gente, depois que começa a depender dessas minúsculas e milagrosas pilulas para conseguir levar uma vida com maior qualidade ou pelo menos algum conforto. E digo isso porque também eu tenho comigo uma caixinha verde transparente e idêntica, onde carrego o meu remedinho diário da tireóide e um outro para regular a pressão.
No ponto do ônibus não há ninguém mais, além de um rapazote que leva uns fones enfiados nas orelhas, a ouvir o que me parece ser um hip hop a todo o volume, a falar sozinho ou cantarolar alguma coisa que não alcanço perceber. Em transe, penso que nem chega a dar por mim. Sento no banco que está vazio, espio o painel eletrônico e vejo que ainda faltam doze minutos para a próxima camioneta, que me deixará perto do Parque das Nações. O termo é engraçado, mas sim, é como chamam aos ônibus que vão do bairro a algum terminal centralizador. Depois, de lá, seguem em autocarros para o centro ou algum outro ponto da cidade.
A moça que chega deve ter uns trinta e tais anos. Tem um passo muito firme e pesado e um ar angustiado. Não demora cinco minutos e um carro para bruscamente junto ao cordão da calçada. O homem dentro do carro parece alterado. Buzina e gesticula, chamando por ela. Ela vira o rosto para o outro lado e tenho a impressão de que chora. Acende um cigarro, as mãos trêmulas, enquanto o carro se afasta. Ainda vejo o condutor a sacudir a cabeça, parecendo contrariado e sem nenhuma vontade de insistir.
Ela remexe na bolsa e tira de lá uma cartela de comprimidos cor-de-rosa, muito pequeninos. Engole um em seco e acende outro cigarro. Movimenta a boca nervosamente, o rosto abatido. Há raiva no olhar. E uma tristeza profunda. São pouco mais de oito horas da manhã, o ponto agora está cheio de gente e ela faz uma ligação para dizer que chegará atrasada, a um lugar que imagino ser onde trabalha. Despede-se e termina o cigarro a tragar fundo, olhando para o nada. A cena me traz a lembrança de um filme antigo. Por alguns instantes sinto-me completamente envolvida na situação e me assalta uma vontade incontrolável de mostrar-me solidária. Mas limito-me a olhar a cena, mesmo com as palavras quase a saltar-me pela boca.
_ Não sofre tanto. Não demora e vais ver que nada disso vale a pena.
O sorriso de cumplicidade não contenho, é o mínimo. Ela me devolve, como quem diz que sabe, mas que no momento é tudo o que consegue fazer.
No outro lado da rua começam a passar as senhoras do bairro, vestindo cinzas e castanhos, os aventais e os carrinhos de compras de um tecido quadriculado. Umas devem estar indo ao pão, outras à Praça, que é como chamam o Mercado Público. Algumas com certeza irão ao talho, escolher a melhor carne para o almoço da família, outras talvez à farmácia. Muito poucas ao café, a cumprir o ritual diário e dar um pouquinho à língua, como se diz por aqui. Uma ou outra vem acompanhada do marido ou companheiro. Ele na frente, a cinco ou seis passos, como se tivesse a maior pressa do mundo. Ela mais atrás, a resignação disfarçada em um misto de altivez e dignidade. Um jeito estranho de parceria que sobrevive ao tempo.
Dia que começa e vida a oferecer-nos todos os dias um palco de múltiplos espetáculos. O grande teatro que é o mundo tem esta peculiaridade, leva uma nova peça a cada momento. Em umas somos protagonistas, noutros plateia. Se tivermos olhos de ver, vemos.
A camioneta chega e abre suas muitas portas. Dentro dela cabemos todos os que estávamos à sua espera e todos os mundos que acabamos por levar dentro de nós.

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Inspiração

Depois da minha aposentadoria na CAIXA, em 2006, morei em Lisboa, Portugal, por onze anos. Por estar vivendo outra cultura e querer transmitir aos amigos um pouco da minha experiência em outras terras, passei a observar e narrar cenas e fatos do dia a dia dos lugares por onde andava. Assim escrevi algumas crônicas do cotidiano.

Sobre a obra

Quando escrevo sobre as coisas que vejo e ouço, tento passar imagens através das palavras, como se fossem fotografias, para que a pessoa que lê possa sentir-se inserida nas cenas. Penso que é uma bela forma de compartilhar o que sinto e como sinto. Neste texto coloco a minha visão dos fatos de um bairro da cidade, com seus personagens, costumes e s

Sobre o autor

Desde pequena adoro ler. Minha mãe diz que quando me perdia de vista dentro de casa, bastava procurar em algum canto quieto e escondido. Lá estava eu, agarrada a um livro e alienada do mundo. Escrever acaba por ser um ato natural e agradável. Tento passar no que escrevo a emoção de que sou feita, com um olhar sempre atento ao interior dos semblante

Autor(a): HELOISA HELENA FERREIRA FLORES (HELOÍSA FLORES)

APCEF/SC