Talentos

O sumiço de Doralice

O SUMIÇO DE DORALICE

Rogério

Rogério acordou às seis da manhã naquela sexta-feira. Acordou tomado pela melhor expectativa que ele conhecia; aquela sensação era a mesma todas as manhãs de sexta-feira em que o fim de semana estava reservado à sua maior paixão: o Motocross. Pegou o capacete, as botas, as joelheiras, arrumou cuidadosamente a mochila com todo o arsenal que o esporte exigia, foi para o escritório e deixou a bagagem o dia inteiro ali, à sua vista, lembrando-lhe que nos próximos dias ele estaria entregue a pistas acidentadas e caminhos de lama. Como de hábito, Rogério convidou seus amigos, tão aficionados quanto ele por esse esporte radical, para se aventurar na pista “Mata Mole“, a pista de Motocross mais arriscada da região, que ficava no interior do Estado, numa cidade há quatro horas da capital.
Os pais de Rogério moravam numa linda granja bem próximo à tal pista de Motocross, então o rapaz convidou seus amigos a partirem à noite, após o expediente de cada um, dormirem na granja e pela manhã saírem sem escala rumo à “Mata Mole”. Esse roteiro, inclusive, era comum entre eles, e quase todos os amantes do esporte no Estado já haviam passado pelo menos uma noite na granja “Doce Vida” onde viviam Seu Rômulo e Dona Ismaela, para amanhecer o dia bem próximo ao seu caminho.
Mas aquele seria o último fim de semana que Rogério e seus amigos teriam essa maravilhosa estadia na casa dos seus pais. Eles estavam de partida, já haviam vendido a granja e estavam de mudança. Após quinze anos levando uma vida bucólica e pacata, a mãe já estava cansada de tanta natureza e carente de civilização, já o pai, com alguns problemas de saúde e precisando de cuidados médicos com certa frequência, também preferia estar na cidade. De modo que foi de comum acordo que o casal decidiu voltar a morar em Belo Horizonte, a cidade natal de ambos.
A despedida causava em Rogério uma tristeza sem tamanho, uma saudade antecipada de todos os bons momentos vividos ali. Lamentava também pela perda da proximidade com a pista de Motocross – sem dúvida todos os seus companheiros de esporte também lamentavam a perda daquele lindo ponto de apoio.
Encontraram-se em frente ao escritório de advocacia de Juliano, um dos veteranos do Motocross, para dali partirem em comboio para a granja. Seriam cinco homens montados em suas motos, com o único compromisso de fazer manobras radicais numa pista cheia de rampas e montes. Mas eis que Juliano, ao surgir na porta do escritório, mostrou que trazia mais um integrante ao grupo de motoqueiros. Uma linda mulher, alta, loira e esguia, com ares de aristocrata que mais parecia uma princesa moderna.
Os homens disfarçaram o ar embasbacado, pois logo perceberam que se tratava da nova namorada de Juliano, ele que não parava quieto num romance, por mais promissor que parecesse aos olhos dos outros:
- Galera, essa é a Bianca. Eu já falei dela pra vocês. É minha namorada.
- Ooooi – disse Bianca com um jeito dengoso.
- OOOooi – responderam os homens em coro.
- Pois é, eu não sabia que ela vinha. Ela confirmou agora, no fim da tarde, e como eu estava cheio de coisas pra resolver aqui no escritório, não tive tempo de falar pra vocês. Tem problema não, né, Rogério?
- Não, problema nenhum! O que não falta naquela granja é espaço. Você é muito bem vinda, Bianca!
Estavam todos tão atordoados com aquela presença feminina estonteante que demoraram a notar o que ela trazia nos braços. Foi Maurício, um dos motoqueiros, quem notou o bichinho comprido e peludo que dormia tranquilamente no colo da beldade.
- O que é isso que você tem aí?
- Ah, essa é Doralice, meu bichinho de estimação. É um furão, mandei trazer dos Estados Unidos. Ela é uma gracinha, vocês vão ver, passa quase o tempo todo dormindo, mas quando acorda é uma alegria só. Eu estou levando a gaiolinha dela, a ração, o cobertorzinho, tá tudo aqui. Ela não dá trabalho, eu a levo comigo pra onde eu for – e deu um longo cheiro no bicho, que permanecia em sono profundo, mesmo com o barulho da rua e o arrocho da dona.
- Ah, que legal, nunca tinha visto um bicho desses. Achava que bicho de estimação era gato e cachorro, no máximo um hamister, que já me parece bicho esquisito de se ter em casa, mas tem gente hoje em dia que cria até porco como animal de estimação.
A mulher pareceu não gostar do comentário de Rogério e explicou, sem o dengo na voz, que os furões eram bichinhos muito afetuosos e cativantes, até mais do que gatos e cachorros, na sua opinião:
- Aqui no Brasil eles são animais selvagens, mas nos Estados Unidos, de onde veio a Doralice, desenvolveram uma raça doméstica que está cada vez mais popular entre os criadores de pets. Muita gente os confunde com roedores, mas são mamíferos, da família dos Mustelídeos.
- Ah, sim, claro... É ignorância minha... Pois bem, você e Doralice são muito bem vindas à granja dos meus pais e à nossa aventura de fim de semana.
- Pode chamá-la de Dora.
- Dora, sim, Dora... A Dora gosta de andar de moto?
- Não, não, nem ela nem eu. Eu e Juliano vamos na caminhonete dele, a moto vai na boleia.
- Sim... e então, vamos nessa?
- Vamos! – Responderam animados os homens e Bianca também, Doralice só fez se revirar no colo da dona, enquanto cada um tomava seus postos nas motos e na caminhonete.
Chegaram à granja “Doce vida” à meia noite. Cansados, mas com aquela famosa felicidade de quem faz o que ama. Todos os moradores da granja tinham o hábito de dormir cedo e acordar com os primeiros raios de Sol, inclusive Seu Assis, o caseiro, então foi o próprio Rogério quem abriu as porteiras para os amigos entrarem e os alojou em seus respectivos quartos.
A propriedade era imensa, com muita área verde e algumas construções: havia a casa principal, onde dormiam os pais de Rogério – uma bela casa com alpendre e muitos cômodos – e quatro chalés ao fundo, um para cada filho do casal, mas, na ausência destes, que depois de casados quase nunca vinham à granja, era Rogério quem os preenchia com seus amigos motoqueiros em suas frequentes idas à pista do “Mata mole”. Mais atrás vinha a casa do caseiro Assis, que acompanhava a família há anos, desde que os meninos eram pequenos.
Alojou Juliano e Bianca no primeiro chalé, os três amigos no segundo e foi dormir sozinho no chalé mais distante, cansado que estava de ser zoado por seu ronco retumbante. Todos foram logo dormir, ansiosos pelo dia seguinte. Em nenhum momento até ali se viu aquele bichano exótico de olhos abertos. O animal parecia feito de sono. Achou-se mesmo que ele não dava trabalho.


Bianca

Bianca acordou de uma noite muito bem dormida depois de quatro horas de viagem noite adentro. Achou o chalé muito confortável e seguro, tanto que deixou Doralice dormindo fora da gaiola, para ter o prazer de ser acordada pelo pet, que costumava ser seu alegre despertador nas manhãs.
Levou um susto ao perceber que Doralice não estava no quarto. Viu a fresta por baixo da porta, que não havia percebido na noite anterior, cansada como estava, mas achou que por mais flexível que fosse o corpo do furão, não passaria por um espaço tão estreito.
Procurou em todos os cantos do quarto antes de admitir que Doralice havia mesmo fugido. Ela gostava de se esconder, mas sempre aparecia quando cansava da brincadeira. Começou chamando manso, sabendo que o animal atendia aos primeiros chamados da sua voz melosa, mas à medida que chamava e Doralice não vinha, seus nervos começaram a se exaltar, diante da possibilidade de ter perdido seu bichinho querido. Os chamados de Bianca pelo furão logo acordaram Juliano, que esboçou certa preocupação apesar da preguiça em se levantar.
Começou assim o martírio de Bianca, em sua busca repleta de culpa por não ter colocado o furão pra dormir na gaiola, por tê-lo trazido àquele lugar desconhecido, por ter se envolvido com aquele homem maluco, por ter tomado cada decisão que a levou àquele lugar, naquele momento, naquela situação. Ela conhecia a fama de namorador de Juliano e seu sexto sentido lhe dizia que ela teria um grande desgosto com aquele romance, mas imaginava que seria algo entre ele e ela: uma traição, uma desfeita, qualquer coisa, mas perder Doralice acompanhando uma aventura do namorado era um desgosto para o qual ela não estava preparada.
Já estava beirando o desespero quando viu Rogério e sua mãe chegarem ao alpendre da casa principal. Correu em direção aos dois, aflita, mas tomada de uma nova esperança:
- A Doralice sumiu! – Disse com a voz trêmula – Talvez ela tenha entrado aí na sua casa. Posso entrar pra procurar?
- Claro! – Disse Rogério.
- Não! – Disse a mãe ao mesmo tempo. – A mudança está toda organizada. Não pode mexer em nada! – Falou a mulher com indisfarçada má vontade – A casa ficou fechada a noite toda, acho difícil ela estar aqui, eu teria visto, com certeza.
- Mas pode ser que ela tenha entrado agora de manhã, mamãe... – Emendou Rogério fazendo um gesto para Bianca entrar.
A moça entrou na casa sem fazer cerimônia, ignorando as objeções que fazia a senhora. Viu que a sala estava cheia de caixas e móveis coberto por lençóis: um lugar perfeito para Dora se esconder e dormir por horas. Bianca pôs-se a chamar por Doralice e procurou, procurou, procurou.... Em alguns momentos sentiu o cheiro característico do furão, sentia-se próxima dele; a cada novo canto em que o procurava, sentia renovar a esperança de encontrá-lo e a cada nova decepção por não o achar, sentia mais palpável a ideia de que havia mesmo perdido o seu animal de estimação. Já não estava suportando aquela angústia crescente, então sentou na cozinha e chorou o sumiço de Doralice pela primeira vez.


Os motoqueiros

Os três motoqueiros acordaram muito dispostos e bem-humorados. Vestiram-se rapidamente, comentando mais uma vez sobre a namorada gostosa do Juliano; ela também fora o assunto deles antes de dormirem na noite anterior. Maurício comentou que foi acordado por ela chamando pelo bicho bizarro que ela criava e deu a entender que lhe fez uma solitária homenagem logo cedo, antes de acordá-los, e arrancou dos dois uma gargalhada sacana.
Chegaram os três na cozinha, todos montados com suas armaduras de motoqueiro e encontraram Juliano consolando o choro da namorada, Rogério com cara de velório e Dona Ismaela com uma expressão indefinível. Logo souberam do incidente do sumiço de Doralice. Os dois motoqueiros se mostraram solidários, mas não Maurício, que soltou um queixume irritado quando percebeu que o sumiço de Doralice colocava em risco a ida do grupo à pista “Mata Mole”.
- Ela aparece! Ela vai aparecer! Ela deve estar dormindo em algum canto, no fim do dia ela vai estar bem tranquila de volta à gaiola enquanto você vai passar o dia nessa agonia sem necessidade, Bianca...
Juliano olhou o amigo com cara de reprovação
- Se você quiser ir vá! Eu vou ficar aqui procurando o furão da minha namorada. Não tenho cabeça pra pensar em Motocross sabendo que Bianca está nessa aflição.
- Eu também vou ficar aqui procurando Doralice, quem quiser ir à pista, vá. – disse Rogério, sem crer no que estava dizendo.
Os dois motoqueiros aderiram à equipe de buscas, confiantes de que o bichano iria aparecer logo e todos seguiriam à pista de Motocross sem nenhuma adversidade que lhes atrapalhasse o divertimento. Mauricio acabou vencido; não achava tanta graça em ir à pista sozinho, então achou melhor ficar por lá, fingindo estar preocupado com o bicho estúpido daquela mulher tão linda quanto estraga prazeres.
Fizeram equipes de busca por área, separaram-se para procurar o furão nos mais diferentes cantos da granja. Dona Ismaela e Rogério se incumbiram de procurar o furão dentro da casa principal. O caseiro Assis se prontificou a procurá-lo nos terrenos de mata mais fechada e se embrenhou pelos matagais. Os motoqueiros se encarregaram de procurar dentro dos chalés e nas áreas abertas (havia um anseio secreto entre eles de achar o tal bichano e receber da bela Bianca um abraço caloroso e sua eterna gratidão). Juliano foi até a cidade vizinha, imprimiu vários cartazes com a foto de Doralice sob o título “PROCURA-SE” e espalhou pelos arredores da granja. Bianca ofereceu dois mil reais de recompensa para quem trouxesse sua Dora de volta.
Rapidamente começaram a aparecer vizinhos jurando que viram Doralice andando em suas propriedades. Os vizinhos da granja também se engajaram na busca e o dia inteiro foi dedicado a esta ação, em vão.
No domingo, idem.
O último fim de semana de hospedagem na granja “Doce vida” foi amargo e pesaroso, a aventura na pista de Motocross foi substituída por dois dias de buscas infrutíferas. Os motoqueiros voltaram pra cidade tristes e frustrados, com a energia que deveria ser gasta em manobras radicais represada num sentimento de aflição e perda. A pista de Motocross continuaria lá, à disposição deles, mas a bela e aconchegante granja “Doce Vida”, não.

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Inspiração

Esta história é baseada em fatos reais, ocorreu com um parente da minha colega de trabalho da Caixa. Comentei com ela que precisava escrever um conto para participar do concurso, mas ainda não tinha ideia sobre o que escrever. Ela ficou por uns instantes pensativa, depois disse: "Eu tenho uma história interessante pra você escrever"

Sobre a obra

Escrevi o conto num tom de suspense, para despertar a curiosidade do leitor. A história ficou dividida em dois contos sequenciais, mas que possuem sentido individualmente. Todos os nomes foram mudados no conto, com exceção de Doralice, que de fato era como se chamava o(s) personagem(ns) na vida real.

Sobre o autor

Escrever é um dos meus maiores prazeres. É o momento em que o tempo pára e minha mente fica totalmente envolvida na atividade, em estado "flow". É a minha arte preferida.

Autor(a): ALINE PEREIRA GURGEL (Aline Gurgel)

APCEF/RN