Talentos

HPAP

Para ser sincero eu espero que acreditem nesta história. O hospício, claramente não iria dar crédito a isso. Certamente daria merda. Diziam: você só vem para comer. É importante comer, qualquer ser humano precisa comer. Mas se fosse só isso, não me chamariam de louco. A história aconteceu um dia antes de eu ser obrigado a ficar no sanatório…
Alguns dizem que um dia não pode mudar as coisas, mas eu lhes digo, um dia faz toda diferença na vida de alguém. Afinal, a vida é uma composição de união de dias. Ou um dia seria apenas uma epifania de um conjunto de dias?
Nunca fui de grandes posses. Resolvi vir para a cidade grande quando tinha apenas uns vinte e poucos anos. Nasci no interior do Estado do Tocantins. Mas nem ao menos uma cidade pequena era… o rio cortava a propriedade, gostava de gastar as minhas horas olhando para aquilo que mais se aproximava de uma locação hollywoodana.
Naquela época não era como hoje, que você poderia vencer, não importa a cidade que nascera. Um buraco era um pouco mais embaixo. Não acredita? Não?! Não existia circulação de renda, tudo estava na mão dos ricos, se hoje 1% da população controla 50% da riqueza, naquela época era 0,1% para 90%. Sim! Eu juro.
Não confie no IPEA, IBGE, DATA FOLHA, entre outros. Todos obedecem a um mesmo senhor o dono do capital. Confie em mim, no meu relato, no meu testemunho. Não cometa o mesmo erro que o sanatório, não faça isso.
Vim para a cidade grande e sempre gostei de trabalhar, não tive problema com o emprego. Varria as ruas. Todos os dias. Acordava sempre às 7:00, voltava para casa quase às 22:00, mas não reclamava, afinal, tinha um emprego, um lugar para chamar de lar, uma cama muito quentinha e comida… como eu gostava de comida.
Coincidência ou não, o senhor pode acreditar, o meu salário estava atrasado, eu nunca atrasava o serviço, mas os patrões insistiam em fazer isso comigo. Amigo, o senhor não imagina como Brasília é uma cidade fria, já morava lá há um ano e não arrumei um único amigo. Um único! Mas o que vou te contar, é a mais absoluta verdade, e o senhor sabe que é, as pessoas humildes como eu, falam a verdade, nada mais que a verdade. Não se esqueça disso.
O senhor deve esta se perguntando por que não conto o que me propus a contar, mas o fato é que há uma grande vergonha. Por isso estou enrolando tanto e preparando o senhor. Já passou fome? Não desejo isso nem para o pior inimigo. Todos os dias ia a casa lotérica perguntar se o salário já havia caído na conta e nada. Nada.
Abria a geladeira e estava tudo acabando. Acabado. A fome. O monstro começava a nascer dentro de mim, por mais que achamos que nos conhecemos, não sabemos o que faremos em situações extremas, eu por exemplo, sempre achei que num momento de fome eu iria fazer loucuras, roubar, matar e comer…
Comer. Fome. Salário? Nada. Os dias iam passando e o provimento nada de cair na conta, o patrão sumira e o trabalho aumentava, o encarregado havia dito que se não trabalhasse naquele mesmo dia estaria no olho da rua.
Mas? Fome. Nunca vou me esquecer disso, eu sempre varria a rua de frente o HPAP (Hospital de Pronto Atendimento-Psiquiátrico), via aquelas pessoas trajando aqueles lindos uniformes brancos. E os loucos. Ah! Os loucos.
O que é a loucura se não a certeza de uma lucidez? Certa vez escutei um casal conversando, não sabia se eram marido, esposa, amigos. Apenas talvez, não existam loucos. Talvez, apenas pareçam pessoas especiais não encaixáveis em padrões. Pessoas loucas não são normais, entretanto, essa premissa é óbvia é o que há de fundamental em sua exclusão para o restante da sociedade, se há alguém assim, este é precedente para exclusão. A insanidade se torna algo não humano, portanto, as justificativas são aceitas para tratar essas pessoas como não humanas.
Pesado né? Mas até ali tudo bem, o problema se deu quando veio a segunda da parte daquela mesma conversa, que dizia que essas justificativas passam para os loucos e chegam aos homossexuais, que sua figura se aproxima de um animal o veado, logo isso justifica o Brasil ser o país no mundo em que mais se assassinam-os, pois, no imaginário coletivo, não existe humanidade neles. Essa era a vantagem do meu uniforme, as pessoas conversavam sobre os mais variados assuntos e eu só varria, varria… era como se ninguém me visse.
Aquele hospital… em outro dia, vi chegar um homem muito grande e forte, eles estava amarrado numa camisa branca grande, acompanhado de outros quatro guardas. Do nada, ele começou a gritar, correu em direção a pista e se jogou na frente de um ônibus.
Pesado? Calma amigo, isso ainda não é nada daquilo que vou te contar, na verdade ele nem se jogou, apenas se debateu. O encarregado… maldito encarregado… continuava a trazer trabalho e nada do salário. Eu nem lembrava mais a última boa refeição que havia feito, mas eu não tinha escolha, precisava ir trabalhar, eles ao menos forneciam almoço.
Tudo parecia como em todos os outros dias, exceto por eles terem instalado uma nova parada, uma com um espelho… Um grande espelho. Eu nunca gostei de espelhos, desde pequeno, via os outros olhando o rio para ver a sua imagem refletida, eu queria saber de imagem. Os meus irmãos me caçoavam, diziam que eu não gostava, pois que era muito feio. Mas eu não era feio, ao menos fui o primeiro a ter uma garota.
Talvez não tivesse uma boa imagem, mas o fato era que a minha dicção era excelente. Por isso, senhor, reforço-te, confie no que eu digo, pois é a verdade.
Voltando ao espelho, ele chamou muito minha atenção, como era grande, reto, não côncavo. Foi quando notei algo assustador. Ou melhor, não me vi. Apenas o uniforme laranjado…
O que estava acontecendo? Onde eu estaria? Seria uma brincadeira do espelho? Ele mostraria apenas a sua roupa? Ele não mostraria a humanidade que existe em você? Via claramente cada detalhe, o nome da empresa “VALOR”, o boné verde, o brilho forte do uniforme. Mas nada do meu rosto. Será que seria só comigo? As outras pessoas da parada agiam normalmente. Chamei-as.
Mas ninguém falava nada. O que estava acontecendo? Puxei um senhor pelo braço para a frente do espelho, ele estava lá! Estava! Igualzinho, via a sua roupa, os seus cabelos brancos, seus olhos castanhos, suas rugas, cada detalhe! E ao seu lado, um uniforme de gari.
Eu estava louco?
A loucura não é mais que uma certeza de lucidez. A barriga roncava, as pessoas do hospício poderiam me ajudar? Dirigi-me. Eles disseram que eu era uma pessoa normal, lúcida, plena, que eu tinha ido lá apenas pela comida, que estava de onda, trouxeram-me um espelho e perguntavam o que via.
O que eu via quando eu me encarava ao olhar o espelho? Dentro da sala do HPAP, tudo era branco. O doutor me olhou nos olhos, e me trouxe um espelho, disse para descrever o que via, e do borrão pude ver o meu rosto, mas já era tarde, não queria mais sair dali, lá fizera amigos, e havia comida… comida…
- Vejo apenas um monstro. Parti para a agressão física contra o doutor.

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Inspiração

Um olhar para as mais diversas manifestações de inteligência humana.

Sobre a obra

Fala sobre a nossa falta de gratidão perante à vida.

Sobre o autor

Escritor, apaixonado por literatura e pelo ato de escrever. Acredito que a literatura é a única esperança da humanidade para transformar o mundo num lugar melhor. Por isso escrevo, por isso leio, por isso vivo em prol da Literatura.

Autor(a): GUSTAVO ARANHA DA SILVA SOUTO (Gustavo Aranha)

APCEF/DF