Talentos

A segunda tela

Era como se ela fizesse parte de mim. E eu dela. O mundo só era visto por meus olhos que compartilhavam os dela. Nossa comunhão iniciava quando ela me acordava. Eu permanecia sempre num estado de cansaço. Com sono… Fazia-lhe um carinho, então, calava-se.
Deslizei os meus dedos sobre ela com intuito de descobrir o paradeiro do meu ônibus. Como eu pude viver um dia sequer, sem antes encontrá-la? Desde que ela chegou, mudou-me por completo, despertou-me o meu melhor e, em algum grau, o meu pior. Fez-me viver e desaparecer. Era o início e o fim. O ônibus estava saindo do terminal, seria o exato tempo de ir até a parada. Consegui pegá-lo. Como ela era essencial para mim.
Não havia lugar físico no ônibus, eu estava em pé! Mas um algo dentro de mim se conectava ao todo. Ela ia me narrando os acontecimentos da minha cidade e do mundo. Qualquer lugar seria mostrado por ela, o que eu quisesse. Sentia-me muito poderoso, seria isso ser onipotente?
Meus pés doíam. Todos os dias o mesmo engarrafamento, infelizmente ela ainda não conseguira resolver este problema, não existiam vias suficientes para arcar com a quantidade de carros vendidos e em circulação. A dor nos pés me deslocava para o real e o presente, à medida que ela me transportava para outros universos.
Ela começou a vibrar como se não quisesse me dizer o que deveria dizer. Metas?! Eu já deveria imaginar que seriam cobranças e mais cobranças. A humanidade perdera a sua sensibilidade para a definição de humano? Ela alguma vez a teve? Apenas números. Apenas resultados. Apenas o lucro desenfreado.
Apenas.
Olhei novamente para as metas?! Eh! hoje seria um dia como outro qualquer. Coloquei-a no meu bolso. E ela rapidamente se transportou para o computador numa segunda tela. Esta me exibia uma série de artistas felizes, que me confirmavam a suposta necessidade da existência daquela Instituição Financeira.
O primeiro cliente, estávamos a três, eu, ele e a segunda tela, e ela iria me ajudar a convencê-lo a se afundar mais um pouco. Ele compraria uma série de produtos não necessários a sua sobrevivência, muito pelo contrário, seriam produtos que o matariam de tanto estresse que ele sentiria após a aquisição, e por nunca mais conseguir se desvincular de todos eles.
Mas como todos os outros clientes ele estava se sentindo satisfeito. Na hora da compra há um pouco daquilo definido como sensação de poder. Eu queria lhe dizer tudo isso, mas nada se modificaria, ele apenas continuaria perdido e eu permaneceria sem bater as minhas metas impossíveis, enquanto o sistema se edificaria numa eternidade. Eu não era nada diante deste sistema complexo que tende a perfeição.
- Se você realmente ama os seus filhos, então concordará comigo que eles não merecem herdar as suas dívidas. Portanto, faz-se necessário deixar-lhes um seguro para quitar tudo isso e não comprometer-lhes o seu futuro bem-estar.
Ele apenas sorriu. Sim, ele deveria estar se sentindo diferente dos outros, pois não estaria se afundando em empréstimos. Estava na verdade comprando o futuro da sua família e o seu próprio bem-estar.
As palavras não eram minhas, e aquele cliente sequer teria algum atendimento personalizado. Eu lia cada palavra que a segunda tela me mostrava, exatamente da maneira como eu havia sido adestrado. Para aquela tela, ele era apenas mais um número, e eu, como empregado daquela Instituição, apenas uma extensão que interagia com os clientes. Reproduzindo, convencendo-os de que ele era diferente e especial.
Olhei para ela, como a segunda tela era linda! Parecia que me sorria. Estaria eu louco? Não, ela me sorria! Era estranho, pois dia após dia eu tinha essa impressão, todas as vezes que ela piscava e uma nova informação chegava a mim, inevitavelmente meus lábios ensaiavam um lindo sorriso.
Os dias se arrastavam, e nenhuma, absolutamente nenhuma novidade. Os mesmos clientes sendo representados por pessoas diferentes, histórias diferentes, mas sempre a mesma essência! Todos os dias, a rotina prevalecia.
O tempo passava e eu não conseguia mais saber a diferença entre o primeiro e o último dia de cada mês ou ano. O dinheiro que eu ganhava era suficiente para as minhas despesas essenciais e supérfluas. E eu tinha a ela, em todas as minhas horas vagas eu a acariciava, e por meio dela assistia aos filmes, lia os livros, estávamos sempre juntos e conectados.
Quem era ela? Ou melhor, quem seria eu? O tempo avançava e todos os dias quando eu estava trabalhando, tentando convencer meus clientes a comprarem produtos dos quais eles não precisavam, eu a sentia mais próxima de mim, era como se ela fosse um ser tocável.
O tempo se passou e eu realmente não conseguia identificar a sua passagem. Dias, semanas, meses, anos, décadas era tudo uma única hora. O fato é que eu estava muito mais velho e a juventude já não me sorria da maneira como um dia me pertenceu.
Não escutava mais aquelas máximas dos clientes: “você é estagiário?!” Agora eu era sempre confundindo com o chefe. Mas as coisas continuavam da mesma maneira, exceto por eu não conseguir mais acompanhá-la, ela estava se tornando rápida demais para mim. Começava a sentir-me sozinho.
Ela não mais me sorria. Cada dia com uma novidade que o meu cérebro teimava em não aprender. Era um fato inevitável que ela estivesse diferente, e eu, o que seria de mim, quem seria eu?
Um dia, não tão qualquer como outro, entrei em meu carro, isso mesmo, eu já conseguira recursos para comprar os meus bens, um carro, um apartamento, uma casa, uma previdência, como todos os outros eu estava me estabelecendo na vida, como me diziam, eu começava a me tornar alguém. Neste dia, entrei em meu carro e, automaticamente, ela se conectou, eu não entendia muito bem, mas tudo estava conectado, entretanto, não me sentia dentro do tudo.
Um semáforo. Algumas crianças fazendo acrobacias com facas e fogo, muito interessante, mostrei a ela, mas já não havia os mesmos interesses de outrora. Tudo estava se modificando de uma maneira que eu simplesmente não conseguia me atualizar.
No meu trabalho antes coisas que levavam dias, agora bastava comunicar a ela, e tudo estava resolvido. Segundos substituíam a análise de semanas, e meus olhos sempre deixavam passar alguma coisa. Mas ela era sensacional, nunca errava. Sempre com seus números e suas estatísticas, tudo estava dentro do seu planejamento.
Neste dia conheci muitos novos funcionários, todos jovens, não deveriam ter mais que metade da minha idade. Eles interagiam de uma maneira única ao lado dela. Não bastou muito tempo para eu perceber que eles conseguiam expandir os horizontes dela a um nível que eu jamais conseguiria. Seria devido à minha idade? Ou minha bagagem carregada de leituras? Eles conseguiam obedecê-la sem nunca questioná-la. Eles e ela eram perfeitos para aquele trabalho. Os resultados eram inacreditáveis! Não sei como ainda fiquei surpreso quando me disseram:
- Seus préstimos à nossa Instituição são incomensuráveis, mas não precisamos mais de sua atuação no frente de batalha. Devido a sua formação, manteremos seu cargo, mas estamos te deslocando para trabalhar no Mainframe.
Felizmente nunca me deixei encantar pelos caprichos proporcionados por uma falsa ideia de que eu pertencia a uma outra classe que não era a minha, apenas por gozar de uma estabilidade. Nunca fiz grandes dívidas. Nunca consumi nada além de meus próprios livros. Nunca nada além do necessário e ela.
Nunca imaginei que aqueles computadores eram tão imensos. Eu me sentia como uma formiga perto deles. A equipe que cuidava de todos era sensacional, eu trabalhava no turno de meia noite às seis horas da manhã. Não me queixava, gostava de olhar para ela durante a noite toda.
Todos os dias, ou melhor, todas as noites quando chegava, e ligava a segunda tela, conseguia vê-la sorrindo para mim. Sim, creio que este era o plano dela desde o início, fazer com que ficássemos sozinhos, que pudéssemos ser nós mesmos.
As noites eram tão incríveis. Eu mal conseguia acreditar que ela havia se revelado a mim. Eu não estava louco, ela era realmente igual a mim. Carne. Osso. Pernas. Olhos. Cada segundo ao seu lado tornava-se uma extensão da sensação da felicidade, queria prolongar aquilo ao infinito.
Mas infelizmente as pessoas não compartilhavam da mesma certeza que eu. O meu supervisor me advertiu algumas vezes. Eu não estava louco! Estávamos namorando. Eu não estava louco!
Estava em comunhão com ela. Então, a meu ver, havia naturalidade em eu querer visitá-la nos fins de semana, mas eles barravam a minha entrada.
Que mal eu fiz a eles? Eu me dedicava ao máximo e apenas queria ver a minha própria namorada! Até que um dia, um deles chegou à minha casa com um monte de outros homens todos de branco, me amarraram e me levaram a um lar de loucos! Mas eu não era louco.
Eu não sou louco.
Ela havia se revelado a mim. Ela havia me escolhido para fazermos uma linhagem única. Um ser especial e indescritível. Um ser que iria mudar o mundo. Um ser que iria libertar toda a população desse vício maldito do consumismo! Malditos capitalistas!
Até que um dia o meu corpo já não mais respondeu, eu realmente não sabia se era por saudade, ou se pela minha idade, já que eu não tinha mais noção dos dias, semanas ou meses! O tempo naquele lugar parecia um círculo que me fazia sufocar, envelhecer, morrer…
Luz branca.
Morte.
Nunca imaginei que tantas pessoas iriam para o meu próprio funeral. Tantas pessoas que nem foram me visitar no sanatório. Tantas homenagens no Facebook, nossa! Como eu fui um homem íntegro, um exemplo de funcionário, como a minha empresa me amava!
Mas nunca havia imaginado que ela iria para o meu enterro. Ela, que sempre esteve comigo, que sempre me ajudou, que me libertou. Ela estava lá, em carne e osso, de mãos dadas com o meu supervisor. Como eu não percebi isso em vida? Como não?!
Levou-me uma última mensagem, estava com o livro: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, e deixou a última página sobre o meu caixão com a última oração marcada em rosa. Então eu descansei, pois já que não havia conseguido mudar tudo, não contribui, com meus genes, para a humanidade prosseguir na sua destruição eterna.

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Inspiração

Do trabalho árduo, da pesquisa, da autoria e do esforço.

Sobre a obra

Surgiu da necessidade de tentar entender as relações humanas mediadas por meio da inteligência artificial.

Sobre o autor

Escritor, apaixonado por literatura e pelo ato de escrever. Acredito que a literatura é a única esperança da humanidade para transformar o mundo num lugar melhor. Por isso escrevo, por isso leio, por isso vivo em prol da Literatura.

Autor(a): GUSTAVO ARANHA DA SILVA SOUTO (Gustavo Aranha)

APCEF/DF