Talentos

Confissão

_ Há de ventar ´inda, será?
_ Há de sim, como não!
_ É que anda tão paradas as folhas das laranjeiras que, pra mim, quando venta de bocado, são elas que me dizem. Vejo as florezinhas no chão, coitadas, brancas, brancas...
_ Há de será, pois não?
As horas passam e a de deitar se vai longe. Elas mesmas já sonham, enquanto na luz da lâmpada a mariposa me vem sacolejar na cabeça que já são horas. Mas será desonesto de minha parte ser tão rude? Em dizer que já são horas afinal? De deitar enfim... E os sapos vão coletando insetos preciosos, brilhantes, e as vespas descansam em suas casinholas, e todavia eu me confesso.
O vento começa a levantar suspiros do oeste, devagar; através dele a lua chama atenção, prenhe.
_ ´Inda assim faz tanto frio!
_ Parece não saber como é fria a noite por cá. Não vê que, mesmo sem vento, a modorra bate; nada que venha lhe trazer qualquer íntimo arrepio, é tudo muito externo, superficial, uma aragem morta, como se diz por aí afora.
_ Por aí onde anda a senhora?
_ Por aí tão somente, que por qualquer lugar o vento corre... até aqui há de ser assim, mesmo parado como o vento anda...
As pontas dos meus dedos que observo sobre o colo têm uma admoestação cinzenta, ou algo azulado que reclama calor. Levo-os ao lábio inferior, assopro, o ar quente envolve meus pulsos, mas ele percebe meus movimentos, mesmo íntimos. E sei que falará sobre o frio novamente.
Foi um dos cães (não sei qual?) saiu de sua toca de terra, coçou-se e abancou-se num pilar próximo. Ele estala os dedos para chamá-lo, mas os cães daqui não se importam com estalidos e esticando a cabeça, ressona já. Ele o olha com curiosidade estranha, não o afague, digo, mas ele se levanta, e peço que se afaste, por favor, e me levanto. Ele levanta os braços assumindo imparcialidade, observa bem o cão deitado, bem demais. Eu olho para o cão e me sento novamente, o cão está assustadiço, como quem desperta antes do tempo, balança somente as orelhas e nos ignora por completo outra vez.
Eu que tanto quisera ser como ele – agora o percebo – ainda com as mãos levantadas, talvez maculado pelo medo, porque ousei lhe falar tão rispidamente. Que tanto fiz para ser como ele, em viver sua filosofia, e noto que se senta, embora nada contrafeito, embora silencioso. Que cruza as pernas com essa incomensurável delicadeza e torna a me olhar, a fusão de seus olhos se completa com meu corpo retraído numa irritação temporã.
_ Há de ventar, a senhora há de perceber tão bem quanto eu que amanhã logo cedo serão as flores das pitangueiras que embranquecerão o chão, este terno véu de noiva, conquanto trêmulo por uma continuidade necessária.
_ Mas como se convencer duma tolice dessas?
_ Não é necessário que a senhora se convença.
_ Mas para que então assume tanta importância em vigiar o óbvio?
_ A senhora há de me dizer, há de me confessar que...
_ Ora se ponha daqui pra fora. Desde o começo eu lhe disse que não diria palavra.
_ Olha! Veja lá pouco adiante: as formigas estão migrando pr´algum lugar. Temos que segui-las: este é o óbvio!
E ele não vai embora, não se levanta sequer, parece saber o quanto é inoportuno e se deixa estar, assim como o deixo, enfim... Mas o cão subitamente se levantara sem que o visse e mordeu brutalmente sua mão. Agora era culpada, porque o cão era meu. Era como se o houvesse mordido eu mesma, porque o cão simplesmente não tinha intenção de saber nem de formigas, nem do óbvio. Estava aborrecido, eu o via.
_ Será preciso que lave a mão. Não... não ponha a ferida na boca, está suja, não percebe?
_ Não tem importância, ele me morderia antes mesmo. Não lembra que eu o pirracei, que me aproximaria dele e a senhora me impediu.
_ ´Inda assim carece lavar com água e sabão, senão infecciona.
_ Perfeito seria se pudesse arrancá-la, não seria?
_ Como pode imaginar algo desse tipo?
_ O cão é seu, não é?
_ Portanto não sou o cão!
_ Bem... tem plena razão. Absolutamente a senhora impera sobre seus sentidos e eu... eu pareço um troglodita pingando sangue em sua sala de estar.
_ Não iria tão longe.
_ Mas é o que é, digo, sala de estar, não é?
O sangue corria de fato. Percorria um filete pelo antebraço porque ele levantara a mão. Via-se a fenda funda de um canino definidamente. Vinha-me uma vontade crescente de rir, porém me contive a tempo. Talvez fosse seu ar apalermado, cômico para ser exata. O cão voltara para sua toca de areia. De lá o braseiro aceso de seus olhos fixos faiscavam na noite e meu rosto imperceptivelmente se alargou para ele em reconhecimento, e sorria de modo que somente ele não percebesse.
_ Todavia; e então??!!
_ Isso... Você acha que isso realmente é tão vital para que lhe diga. Realmente, o senhor acha que, mesmo estando numa situação desta, eu seria capaz de lhe dizer algo mais.
_ O que espera de mim, afinal? - e gritou para realçar seu apelo. O que espera de mim?
Segurei-o pelo braço são; não, não seria descortesia até se fosse o outro braço que eu segurava. Minha vida simplesmente não precisava dele, ou não o merecia; ele não caberia na pequena extensão que se desenha em meu futuro. Conduzi-o até a porta, e, arrancando o tapete da entrada, fiz sinal para que não retornasse mais. Antes que a hora se consumisse por inteira, pela janela ainda o observei ali parado encoberto pela lua, na soleira nua da entrada, como se o tivesse deixado a segundos atrás. Deu-me pena, a bem da verdade, o vento do oeste danou a fustigar e o frio alongou-se demoradamente.

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Inspiração

Invenções do dia a dia

Sobre a obra

Algumas técnicas de desvio e as mais que o leitor vai descobrindo.

Sobre o autor

Fábio Porto, nascimento 7.12.77, Feira de Santana/BA

Autor(a): FABIO PORTO SILVA (Fábio Porto)

APCEF/BA