Talentos

Sobre()viver

Era tarde, apenas grilos e alguns outros ruídos notívagos eram esperados, mas, ouvia-se boquejo, vozerio e novela, naquelas caixinhas de telas azuis brilhantes que cabiam na palma da mão.
As vias estavam tomadas, paradoxalmente, de esperança e indignação. A fome não tem forma, se exibe voraz e instintivamente selvagem, com o perdão do pleonasmo.
O sol parece que se demora despontar mais que o habitual e a noite é fria, sua algidez só é inferida quando se experimenta todo o ciclo debaixo de seu manto.
Longe dali, em camas macias, alguma insônia desarranja, conduzida por ansiedade, perguntas sem respostas, inquietude trazida pela incerteza do que poderá ser feito amanhã, até onde as mãos alcançarão o contento daquele que espia a noite ganhar o céu banhado por estrelas, e, fome. Para o medo não restou lacuna, pois que seria esse o freio para o dilema que se seguiria; pros de lá e pros de cá.
O sol paulatinamente nomeia-se proprietário desta etapa, junto a ele uma comoção. O corpo, de lá e de cá, agora cansado, precisa despertar para que a fisiologia não desencarrilhe, evitando que o estômago tome o lugar do cérebro. A porta se abre.
Para agora: ordem, espaçamento, perseverança, paciência, senha, fome, expectativa, quentura.
É reiniciada a cena que recentemente virou rotina. Há desproporcionalidade entre os homens; os de lá e os de cá. Manifestamente os de menor número são os que estruturam a legião, e, por mais plausíveis e solícitos que pareçam, não saldam a apetência daqueles muitos que se alimentam de apenas convicção.
Há esperança lá e cá. Uns de solucionar e outros de apenas comer.
O sol, ah o sol... O astro rei agiganta-se. Devora cada gota de suor daqueles crédulos. Os de lá e os de cá.
O bit, os bytes, devaneiam como se no tempo da manivela.
Uns almoçam, outros nutrem a fé.
Eis que progressivamente as fomes vão tornando-se meios, e cada vencedor daquele contexto renova o ânimo dos que ainda almejam ofertar à noite seu sono pacífico.
O sol se cansa e dá lugar a uma densa nuvem, que molha, mas não afugenta.
Há luta. Lá e cá.
Há vitória, em meio a pequenas derrotas, elas são árduas e possíveis.
A lua se apresenta, as portas se fecham, o dia vira noite. Não há herói, há coragem!
A obstinação alimenta as camas insones e as cadeiras que viram camas.
Os grilos sentem falta de seu protagonismo.
Um dia tudo será lembrança de homens fortalecidos por uma guerra que lutaram em nome da vida.


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Inspiração

A confusão que a humanidade passou a enfrentar após a instalação de um inimigo invisível e mortal.

Sobre a obra

A técnica utilizada foi experienciar a luta pela sobrevivência de um povo tão sofrido.

Sobre o autor

Sou uma fã inveterada da vida. Escrevo para fazer paisagem aos olhos de quem deseja enxergar luz onde há escuridão.

Autor(a): MARIA CLARA BARRETO CRISPIM ACURSI (Clara Crispim)

APCEF/RO