Talentos

Êxodo pampeano

Padre Diogo fechou a janela da sacristia da pequena igreja de madeira e riu do quão inútil era aquele gesto naquelas circunstâncias. Lá fora, dois jovens guaranis esperavam junto a Uma parelha de bois mansos atrelados à carreta, carregada com as poucas tralhas do templo religioso. O sacrário de ouro já estava a salvo do outro lado do rio Uruguai, aos cuidados de outros padres jesuítas.
No pequeno salão, a escassa mobília estava empilhada, junto com uma pequena pilha de papéis. Ali estavam os planos - documentos escritos pelo Padre Lourenço, baseados nas práticas de combate do exército romano - que o velho sacerdote ensinara aos índios dos sete povos das missões que enfrentaram, com bravura incomum, a sanha conquistadora de Portugal e Espanha.
Sepé Tiaraju, junto com Nicolau Nhenguiru haviam imposto um grande flagelo aos exércitos invasores, atacando em flancos, com a cavalaria ligeira e com uma infantaria extremamente disciplinada, armada com lanças, boleadeiras, arco e flecha e as fundas com as quais arremessavam pedras que, embora não causassem ferimentos letais, abalavam grandemente a moral dos soldados europeus.
Mas agora era outro tempo. As armas guaranis nada puderam contra as setenta e cinco bocas de canhão e dos quase três mil soldados dos exércitos de Luso e Hispânico. Sepé tombara em combate, na sexta-feira santa, atingido por uma carga de bacamarte português no peito e uma lança espanhola enterrada nas costas. Junto com ele caíram Tiago, de São Miguel, o gigante Ibassu e seu fiel ajudante Nicolau. Os índios coroados e os mamelucos vinham tomando conta de tudo, como um bando de gafanhotos famintos arrasando a lavoura. Último grande símbolo da fé missioneira, a Igreja de Santa Tecla havia sido incendiada, junto com o casario da redução guarani. Os padres Jesuítas haviam sido expulsos e migravam, junto com mulheres e crianças em um penoso êxodo, rumo ao outro lado do Uruguai, onde – no que é hoje conhecido como Chaco Argentino – havia um reduto de muladeiros que acolhia os refugiados dos Sete Povos.
O jovem padre olhou mais uma vez para a pequena igreja, antes de fazer o sinal da cruz e soltar a tocha ardente sobre o azeite derramado no chão. As chamas ganharam força e começaram a devorar a madeira e os papéis amontoados. À medida que a carreta se afastava, a coluna de fumaça ficava mais distante, erguendo-se em direção ao céu como se fosse uma sombria prece de desalento.
Fizeram uma pequena pausa no caminho, para o que seria o almoço. Um pão de trigo, carne seca e um pedaço de rapadura. Rezaram o terço e retomaram a marcha. No pampa escancarado não havia estradas, apenas a orientação do sol durante do dia e as estrelas da noite. Se apressassem a marcha, chegariam antes de anoitecer à casa do vendeiro Tubiraguara – um charrua que se estabelecera perto do Cerro Matrero – e que, apesar de negociar com os soldados do império, recebia com simpatia a presença de padres e índios guaranis (inclusive escondera e tratara ali alguns fugitivos feridos, sobreviventes dos embates campais).
Deviam celebrar a missa, mas não havia tempo. A fuga foi planejada de improviso, no dia anterior, quando o Peregrino Francisco chegou na aldeia com a notícia da morte de Sepé, corregedor dos povos missioneiros, e da chegada de mais e mais soldados à fortaleza Jesus Maria José. A missão dos Jesuítas estava terminada. Viria uma nova ordem cristã, enviada pelo Papa em substituição dos padres da Companhia de Jesus. Os sete povos ardiam em chamas e seus moradores fugiam como podiam para tentar escapar da ganância dominadora dos europeus.
Sentado na traseira da carreta, as pernas balançando ao sabor do lento embalo da estrada, o sacerdote sentia todo o peso do mundo sobre si. A manta que Acauan lhe alcançara não o protegia do frio na alma que sentia. Era como se o sol, que se abatia atrás das elevações cobertas de árvores nativas, fosse o prenúncio do tempo obscuro que se derramaria sobre a terra sem males.
Um ponto luminoso distante, na curva de uma coxilha, indicava que estavam cerca do destino.
A lembrança da aldeia voltou-lhe à memória. Lá ficaram o pequeno cemitério, a praça, o galpão onde se guardavam as provisões, as duas lavouras - Abambaé, a lavoura de cada um, plantada para o sustento da família; e a Tupambaé, lavoura de Deus, onde todos trabalhavam em mutirão e cujos frutos serviam para sustentar os velhos, as viúvas e as crianças órfãs.
De repente o silêncio da tarde que chegava ao fim foi cortado por uma suave mas fervorosa cantilena. Era Batovi, que arrancara do fundo de sua tristeza o Magnificat:

"Magnificat anima mea Dominum
Et exultavit spiritus meus in Deo salutari meo.
Quia respexit humilitatem ancillæ suæ:
ecce enim ex hoc beatam me dicent omnes generationes."

A minh'alma engrandece o Senhor
E o meu espírito se alegrou em Deus meu Salvador.
Pois Ele me contemplou na humildade da sua serva:
pois desde agora e para sempre me considerarão bem-aventurada...

A lembrança da virgem aqueceu o coração do padre, que buscou o rosário em suas vestes e pôs-se a rezar a Ave Maria.

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Inspiração

A história do Rio Grande do Sul à época dos Sete Povos das Missões. O envolvimento dos padres da Companhia de Jesus na vida social dos povos que aqui habitavam e a primeira tentativa de construção de uma sociedade autônoma, independente dos poderes do império.

Sobre a obra

Narrativa histórica. Baseado no Livro "Os filhos do pampa", do Historiador Sergio Antônio Raupp, que descreve personagens reais e fatos narrados minuciosamente sobre o trabalho dos Jesuítas até o ano de1756, ano da morte de Sepé Tiaraju.

Sobre o autor

Fronteiriço de Santana do Livramento, leitor assíduo, apaixonado por crianças, cachorros, gatos, plantas e livros.

Autor(a): HELIO DA SILVA DOS SANTOS (Heliossantos)

APCEF/RS