Talentos

Alma Obtusa

Criança sem adornos, sem fagulhas, sem sorriso, “sem dor”, sem sentido. A pintura escolhida entre tantas outras, servindo apenas para cobrir as rachaduras da parede. Um objeto estranho que ofusca a visão e causa espanto naqueles que temem reconhecer as suas fraquezas, pois é uma pintura franca, sem acabamento, sem segundas intenções.

Criança erradia que tenta fugir, mas não tem escolha. Uma simples pintura pregada no meio de uma parede amarelada. Finge esquecer da dor, enquanto o seu corpo aberto em chagas deixa o sangue escorrer.

Uma criança confusa e perdida que não nutre sonhos e age como um embrulho azedo. Fardo pálido transportado por um carregador sem rumo que tem os braços dormentes e quase não consegue sair do lugar. Segue cabisbaixo e talvez seja mais pesado do que o próprio embrulho, já que apenas nutre lástimas aquecidas e afunda com o seu próprio peso.

Obra que se multiplica no silêncio, mas que nem por isso deixa de ser única, pois se mostra de forma real e pura, não sentindo a necessidade de sorrir, muito menos de ser igual a qualquer outra, sendo especial simplesmente por respeitar o artista que a concebeu.

Todas as noites Miguel fica a contemplá-la e a obra surge como uma aparição magnífica. Beija todo o seu corpo e entoa as suas falsas conquistas, perdidas na sua sorrateira juventude que sucumbe entre os falsos dias. Os seus olhos são dois poços e neles é possível abrigar o mundo. O seu suor é um manto e alguns pingos revoltados e incompreendidos suicidam-se, e vão ao encontro dos rascunhos estendidos sobre a mesa. As letras borradas se enlaçam e é a prova substancial de que ele está vivo.

A pintura encolhida não aceita que o artista divida a sua atenção com algumas folhas rabiscadas. Sente inveja, pois estas podem voar e fazer amor com o vento... São bailarinas de corpo alumbrado, perdendo-se em sonhos, acompanhando uma história musical com desfecho mórbido, ao encontro de um novo mundo em uma infinidade desconhecida.

Assim, a raiva inquietante da pintura produz faíscas que vão, aos poucos, consumindo os antigos rascunhos, sem que o artista perceba as palavras que se perdem e são queimadas como as bruxas no período da inquisição.

Uma obra que não se encaixa e certamente seria arrancada da parede se o artista percebesse quem de fato é aquela Criança Infernal. Uma Alma Obtusa que só pode ficar sozinha para não apertar as outras, crescendo e se multiplicando diante de tantos medos e desejos reprimidos, consumindo a sua própria alma e ruindo, enquanto toda a cor vai embora.

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Inspiração

A inspiração surge nos momentos mais inusitados e é como se estivesse envolvida por uma película mágica. Posso dizer que as pessoas são a minha maior fonte de inspiração. Quando escrevo, os personagens do teatro da vida, que vivem nas entranhas de um mundo tão emblemático, resolvem se mostrar e as palavras brotam de maneira espontânea.

Sobre a obra

A arte não deve ser explicada, mas sim sentida. Cada um pode ter uma percepção diferente, de acordo com as suas vivências e emoções. Uma mesma obra pode ter múltiplas interpretações e despertar sensações diferentes em cada indivíduo. A beleza da arte está em despir-se de rótulos. Explicar a arte é limitá-la.

Sobre o autor


Para mim, a arte funciona como uma espécie de Panaceia, capaz de curar todos os males. Por mais atribulada que seja a vida, ela se torna mais leve quando é possível enxergá-la com poesia, dando valor aos pequenos detalhes e se permitindo sentir “o novo”. Além da escrita, dedico-me também à arte abstrata (desenhos), ao canto e à fotografia.

Autor(a): ANDRESSA PACHECO DA ROCHA DIAS ()

APCEF/BA