Exodus

O início da retirada ocorreu simultaneamente à queda da última cidade de resistência. O mundo claramente havia dado errado. Bilhões de pessoas não tinham mais o que comer. Fome, pragas, miséria e a guerra... Por tudo se guerreava, comida, água, energia. A sociedade pagava o preço de anos de exploração do planeta. O receptáculo dos seres humanos, a terra, a célula que reservava toda a vida em si mesma, estava no fim.
Grandes corporações aproveitaram a especulação e criaram megacidades
privadas e declararam independência do próprio estado. Era o momento da humanidade onde não havia mais estado social democrático, apenas um fascismo privado. Pagava-se para poder participar de determinada empresa/cidade, e ainda esta, te explorava até a última gota de sangue. E foi perto do fim que as coorporações começaram a guerrear entre si. Não apenas pelos consumidores/trabalhadores e pelos escassos recursos, mas também pela ideologia. Uma empresa era mais do que uma fábrica de ideias e produtos, era o próprio governo, era a religião, era o Deus para seus clientes.

Dentre todas, uma se destacava: a NW - NorthWest Company. Mas todos conheciam a NW por New World, Novo Mundo. Eles construíram para si uma grande cidade ao norte, toda cercada e murada, com constante vigia de sua milícia particular. Uma forma de organização sustentável, onde o ser humano era valorizado e a doença que abatia a terra, poderia ser curada. A NW se transformou na terra prometida. Todos queriam fazer parte, hordas de pessoas começaram a migrar para o norte em busca de um espaço. Mas eram barradas ao chegar a seus grandes muros. Com o crescente número de pessoas ao seu redor, assentamentos foram criados e uma grande favela surgiu. Eles eram conhecidos como os refugiados e tentavam, sempre que podiam, invadir os portões da NW em busca de uma vida melhor.

Quando um comboio de pesquisas da NW voltava para a cidade pelo portão principal, uma grande massa de gente tentou invadir a cidade. Os soldados da NW, que eram poucos no momento, tiveram que entrar em ação, a milícia então exterminou quem tentava entrar. Não importando idade, sexo ou raça, formação, intenção ou vontade. Nesta tarde uma massa orgânica foi misturada à terra e a sujeira, o sangue escorreu e se misturou a terra árida formando o início do que hoje é a única área cultivável dos refugiados.

Esse episódio causou um grande furor. A NW dizia ser impossível atender a demanda e pela primeira vez reveleu que estava construíndo uma nova terra “pura” e que a simples presença de um B era uma ameaça aos seres humanos. Por isso o cuidado com a cidade, por isso os muros, por isso a chacina.  Não seria possível construir um projeto se todos quisessem participar.

Os Bs surgiram há muitos anos, não se sabe como, nem onde. Alguns diziam que eram frutos de pesquisas genéticas. Outros afirmavam que faziam parte de uma mutação espontânea, já outros acreditavam que eram o futuro da raça humana, um passo em sua cadeia evolutiva, tinham os que consideravam uma desgraça, como o diabo que mandou seus filhos à Terra para acabar logo com os humanos.
Não é possível identificar um B. Pode ser qualquer um, pode andar ao seu lado, pode conviver com você, pode ser seu melhor amigo. Não é possível conhecer um B porque ele entra em sua mente e a domina. Ele consegue fazer você ver o que não existe, sentir o que não é real, um B consegue te convencer de um fato, mesmo que esse fato nunca tenha existido.

Todas as pessoas que trabalhavam para a NW utilizavam uma espécie de arco na cabeça, o que, segundo eles, impedia de um B, dominar sua mente. A NW lançou os termos para entrar na cidade. O candidato deveria seria avalidado e a entrada seria garantida para quem passasse nos testes. Qualquer um poderia ser aprovado. A principal restrição era que a pessoa não poderia ser um B, mas havia outras, elas deveriam estar saudáveis e ter algum papel produtivo dentro da empresa. As tentativas de invadir a NW acabaram, pois todos os meses eram selecionadas várias pessoas à participar da cidade.

Os que entravam não saiam e nem ouviam-se mais notícias deles, nem sabiam nada o que acontecia lá dentro. A cidade se desenvolveu, do horizonte os prédios altos e metálicos ficavam mais e mais pertos um dos outros. Alguns se pareciam com grandes antenas, outros com reatores. E há dois anos a NW construiu a cobertura. Uma imensa estrutura de ferro que cobre toda a cidade em forma de um grande teto ovalado e cinza fechando toda a extensão de seus muros. Do alto do planeta se vê um ponto escuro, rodeado por uma favela ainda maior de refugiados, pessoas que vivem das sobras da NW e que esperam um dia entrar. Onde a cobertura se encontra com o solo, no ponto em que se assemelha a uma grande montanha, saem regularmente aviões e carros da NW. As notícias dizem que eles estão buscando recursos, mas há rumores de várias abduções de animais, espécies de plantas e sequestro de algumas pessoas.

Quando um comboio chegava à cidade um grupo de pessoas atravessou a barreira em direção aos soldados. Os soldados abriram fogo contra o grupo que se aproximava, mas um dos insurgentes conseguiu atingir um dos soldados, derrubando seu capacete e arco. O soldado levantou-se e parou. Era como se não soubesse quem era, nem onde estava, não sabia o que fazer. Ele tirou a sua farda e jogou em direção às pessoas que chegavam perto. Ele foi linchado e içado como um traidor, os refugiados se refastelaram com os animais, plantas e comidas que haviam no comboio.

A notícia correu rápido, de boca em boca. Em questão de horas toda a favela estava nas ruas, gritando, marchando em direção aos portões. É o começo da queda. A energia do ar chegava a ser palpável. Pessoas famintas, velhos que esperaram anos uma chance de entrar, crianças perdidas, todos que nutriam alguma forma de esperança estavam desiludidos. Havia morrido a esperança e com ela a única fonte de vida de milhares de pessoas ali em volta. Era matar ou morrer.

O movimento de revolta da população adiantou um pouco os planos da NW. O lixo e o esgoto que saiam dos grandes canos da cidade, que serviam de base para a alimentação de muitos dos refugiados pararam de sair. Uma fumaça branca de vários pontos da cobertura da cidade começou a se levantar… Especulações surgiam de todos os cantos, seria um castigo da NW? Será que eles conseguiram aproveitar 100% do material sem gerar mais resíduos? A favela estava em polvorosa. Alguns diziam que a cidade estava se preparando e que o momento estava chegando… para quê? Ninguém sabia...

A população se espremia perto do portão e tentava abrí-lo. Grandes pirâmides de gente apareciam em todo o perímetro do muro. Os portões começavam à ceder e desta vez os soldados não saíram para controlar a população. O grande disco de metal que era a cidade, estava completamente quieto. Enquanto isso o muro começava a ser conquistado, pessoas chegaram ao topo e puxavam umas às outras para cima. Foi um baque seco, seguido de uma grande explosão e muita fumaça. A cidade começou a ganhar os ares. Suas turbinas foram ligadas e ela começava a sair da terra. Quem estava a 500 metros do muro não resistiu ao calor. Milhares de pessoas foram carbonizadas vivas enquanto a cidade sumia nos ares. Os planos da NW ficaram transparentes agora. A sua nova terra não era aqui, era fora. Eles haviam construído uma imensa nave, angariaram os recursos necessários e material humano suficiente para colonizar outro planeta, criar uma nova terra. Começar de novo, começar do zero. Sem nenhum B.

Todas as manhãs eu ia arranjar um pouco de comida próximo aos portões. Ver o movimento, checar para ver se algo havia mudado, escutar as notícias e, ás vezes, planejar um ataque ao comboio.

O arco não era só um escudo mental, mas também um instrumento de dominação. Através do medo dos cidadãos terem as mentes dominadas, eles viraram escravos. Através de um controle muito rígido, imposto pelo arco, a NW conseguiu manter de fora todos os impuros e conseguiu escolher quais os melhores para colonizar um novo planeta. Os mais inteligentes e fortes de todos os seres humanos. A nova terra seria o paraíso dos Deuses da NW.

Foi com o arco na mão que eu rapidamente dominei a mente daquele soldado e criei um motim nas pessoas ali em volta. Uma confusão, era tudo o que eu precisava, fiz com que as pessoas tirassem a roupa do soldado e as jogassem em minha direção, troquei as minhas vestes pela farda. Os arcos não deixavam eu controlar nenhuma mente, mas ao utilizá-lo, As máquinas no portão não conseguiam me identificar. O batalhão recebia ordens para recuar e evitar conflito, foi assim que eu consegui entrar na NW. Lá na cidade as pessoas não usavam o arco o tempo todo, pois não havia perigo de haver um B na cidade.

Agora, da minha janela vejo a Terra ao longe, um pequeno ponto azul ficando cada vez mais pálido no fechar do horizonte… e falando em horizonte, estou muito animado para tudo o que me espera nessa nova terra.

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Inspiração

Estou desenvolvendo uma série de Tv que se passa em um futuro distópico em outro planeta. Ano Passado um pessoal de Brasília me pediu para que eu escrevesse um conto baseado nessa série para que ele pudesse ser adaptado para histórias em quadrinhos. Assim nasceu Exodus.

Sobre a obra

Exodus é um exercício de imaginação do fim do planeta Terra após décadas de Guerras e capitalismo selvagem. Traz também elementos de mutação genética. É um conto distópico apocalíptico.

Sobre o autor

Escrevo roteiros para TV, cinema e outros meios audiovisuais, além de ser colunista de uma revista. Por vezes escrevo contos, para embasar as outras obras, esse é um deles.

Autor(a): JOHIL ANTONIO CARVALHO DA CRUZ JUNIOR ()

DF