Anabela e o homem que lia pensamentos

Anabela não pensava... Apenas vivia sem lembranças do passado ou planos para o futuro.
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Giacomo era um homem muito inteligente. Inventava coisas. Fazia novas descobertas. O que não dava para suspeitar era que suas grandes ideias eram todas roubadas de alguma cabeça brilhante que não a sua própria.
É que Giacomo tinha o poder de ler pensamentos. E de qualquer pessoa. Bastava que ele se concentrasse em alguém que estivesse por perto e compartilhava tudo o que esse alguém estivesse pensando.
Podia usar seu poder para o bem e para o mal e achava que, se não causasse prejuízo significativo, não estaria lesando ao outro se tomasse de empréstimo sua boa ideia e a executasse antes. Escrúpulos ou falta deles?
Frequentava um círculo de intelectuais e, se hoje se aproveitasse de alguma ideia de fulano, amanhã procurava se concentrar em beltrano e no outro dia em sicrano. Preocupava-se mesmo em não prejudicar alguém de forma que se arrependesse.
Sua fama de gênio só fazia crescer. Também pudera: seus companheiros não se cansavam de admirar àquele que se antecipava a eles – até parece que esse projeto saiu de minha cabeça – matutavam.
Claro que Giacomo tinha lá sua inteligência pois sabia compreender e desenvolver as boas ideias “emprestadas”. E é claro também que seu poder tinha seu preço, pois compartilhava os pensamentos podres de seus benfeitores também, além de saber sempre o que pensavam a seu respeito. Sabia-se alvo de inveja e malquerer.
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Anabela nascera com uma doença raríssima que lhe afetava o cérebro. Como não sou médico, não saberei explicá-la, mas o fato é que ela não era capaz de pensar... Vivia por instinto: na hora de comer, comia; na hora de dormir, dormia. Não falava, mas trazia nos olhos o brilho de quem compreendia o que lhe falavam. Andava somente nas proximidades da casa onde vivia. Vestia-se sob supervisão da mãe, que vivia exclusivamente para ela.
Anabela não sabia (e nem entenderia), mas era tudo que importava à sua mãe nos seus quatorze anos de vida. Moravam em uma casa no limite da pequena cidade e não incomodavam a ninguém, mas quando a mãe começou a sentir aquelas dores no peito teve de chamar uma vizinha.
Como a vizinha se mostrasse muito simpática, pediu-lhe que, caso algo mais grave ocorresse, cuidasse da filha e comunicasse a um parente da capital.
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Giacomo vivia com tranquilidade, dinheiro não lhe faltava. Mas sentia que a vida não podia ser só isso. Queria mais... Queria algo que ainda não sabia o que era. E partiu em busca, mesmo sem saber de quê. Frequentou igrejas, botecos, bordéis... Será que o que faltava era um amor?
Tentou encontrar alguém para amar, mas as mulheres por quem se interessava gritavam não em pensamento e as que se interessavam por ele não conseguiam ser mais que indiferentes. Seu poder acabava por limitá-lo quanto ao amor e acabou desistindo.
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A vida de Anabela transcorria sem maiores tropeços. O cuidado da mãe era o suficiente para sua alma que não exigia muito além de paciência e carinho. Mas chegou o dia em que a bondosa senhora teve que partir desta para melhor. Então a vizinha resolveu fazer mais que contatar o parente – decidiu levar a moça até ele.
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Como não conseguisse pensar em retornar ao círculo de companheiros, Giacomo resolveu mudar de ramo. Passou a ministrar palestras. Foi um sucesso: ao chegar à frente de uma plateia sabia o que queriam ouvir... E agradava sempre.
– Meu Deus! Mais um sucesso em minha vida e esse vazio que não sei absolutamente como preencher. O que faço?
Passavam-se os dias e tudo sempre dava muito certo para ele. Tinha uma bela casa, carro moderno, bons livros e bons vinhos, companhias quase sempre muito agradáveis. Empreendeu bons negócios e deliciosas viagens. Era feliz? Não sabia. Aliás, tudo o que sabia era que algo lhe faltava.
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A vizinha de Anabela se encantava com a capital, ao contrário da mocinha que mais parecia um animalzinho assustado. Mas levou o maior susto quando chegou ao edifício onde deveria entregar a garota e descobriu que o destinatário havia se mudado. Por sorte, ele havia deixado o novo endereço com o porteiro.
Tocou para o bairro chique indicado e, ao se deparar com aquela mansão, ficou pasma. Tocou a campainha e um empregado atendeu:
– Pois não.
– Estou procurando um certo senhor Giacomo. Sua tia faleceu e antes me pediu para trazer a filha até ele. É seu único parente.
– Faça o favor de entrar.
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Giacomo ficou muito agradecido àquela senhora. Quis que ficasse com eles, mas ela tinha de ir embora rapidamente, estava já há muito tempo fora de casa e sua família podia estar precisando dela. Então lhe deu um bom dinheiro para a viagem de volta e ficou com aquela garota que em tudo era diferente para ele. A boa vizinha contou-lhe da doença e entregou uma carta onde a mãe explicava melhor.
Anabela entrou na vida de Giacomo como um problema e acabou se tornando a solução para o vazio que enfrentava. Ao mesmo tempo em que se preocupava em encontrar médicos e enfermeiros que cuidassem da menina, encantava-se com a total impossibilidade de saber o que lhe ia à mente. Da mesma forma que não podia roubar-lhe nenhuma ideia, ficava maravilhado com a falta de maus pensamentos. Com ela sentia-se bem, sentia-se útil. Sabia de sua total impossibilidade de mudar qualquer coisa na vida dela, mas se comprazia em poder dar-lhe coisas tão simples, como um pouco de atenção e carinho. Era como a filha que nunca teve, a irmã que desejaria.
Os dias se passaram. Anos se sucederam. E aquelas duas criaturas tão diferentes, opostas entre si, viviam tranquilamente juntas. Aquele homem arrojado enfim encontrava a felicidade. Muito maior que qualquer poder era a satisfação de viver com simplicidade e poder ajudar a alguém.

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Inspiração

O contra-ponto entre uma mente vazia e uma fervilhante, o que seria? E isso ao extremo?

Sobre a obra

Muita leitura e muita tentativa me permitem escrever histórias pitorescas em contos curtos como esse.

Sobre o autor

Gosto de desenhar, pintar e escrever e fiquei em segundo lugar no Centro-oeste nas categorias "Artes Visuais" e "Literatura" no Talentos FENAE/APCEF em 2016.

Autor(a): JOAQUIM MARCELINO DE ANDRADE NETO ()

APCEF/DF