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Curtir, comentar, compartilhar é só começar

Curtir, comentar, compartilhar é só começar

“Posto, logo existo”, sob os olhos arregalados de René Descarte é lugar comum em cartõezinhos virtuais (cartões? Imagens que sejam!) que se propagam feito vírus nas redes sociais. Um chavão com ar crítico-filosófico desses dias apressados também não me parece o jeito mais adequado de começar um conto, concordo com você. Mas precisava encontrar o tom para contar a história da Carmen. E nada é mais verdadeiro, neste caso, do que a constatação de que sua existência, depois de anos em busca de sentido, se confirmou por postagens. Ou, pelo tempo que durou as postagens. Foi essa a conclusão, forjada por um pensamento bem racional, ao reencontrá-la já naquele estado. Merece meu crédito daqui para frente e o risco é todo meu.

Conheci a Carmen nos corredores da universidade. De uma beleza realçada mais pela juventude e inteligência do que pela elegância e simpatia. A timidez lhe deixava carrancuda ou esnobe aos olhos de muitos. O gelo parecia, às vezes, intransponível. Constatei com o desenrolar dos fatos aqui narrados que não era mais que uma capa fina que uma vez atravessada revelava um enigmático azul. Depois nos avistávamos sempre pelos mesmos lugares, principalmente no cinema. O que parece impossível em grandes metrópoles, numa capital provinciana toma ares de normalidade: todos se conhecem de vista ou de sobrenome. Nunca fomos amigas, na essência da palavra. Porém conseguíamos trocar pontos de vista sobre livros e filmes, E, de alguma forma, nossos olhares demonstravam alegria sempre que depois de anos nos descobríamos conferindo a cor do cabelo ou o tamanho da cintura. Era motivo para rirmos um pouco entre relatos sobre as dificuldades da vida. Uma razão para ouvir-lhe as queixas que se repetiam. Saber de mais um detalhe dos cursos que tinha abandonado pela metade. Do último emprego que não conseguira se adaptar. Do casamento que chegara ao fim. Dos filhos que não vieram. Da cachorrinha que morreu engasgada com um osso de galinha ou, da terapia que a soterrava em mais angústias. Confesso que teve um momento em que ao enxergá-la de longe nos corredores do shopping eu entrava na primeira loja, disfarçadamente, para não emprestar meu ouvido à ladainha. Isso é horrível de dizer, eu sei. Mas tem dias que não desejamos que a amargura venha alfinetar o bem-estar conquistado a duras penas na academia e em horas de salão. Semanas depois, com o remorso corroendo as entranhas, abanava a mão de longe e a convidava para um café. O dela pequeno e sem açúcar. Não aceitava sequer dividir a fatia da irresistível torta de banana e canela com cobertura de caramelo. Dividíamos uma água, pelo menos. E eu voltava para casa me sentindo feliz. Não pela ação reparadora, não vou aqui fingir que trago esse traço de generosidade no caráter. Mas porque, de certa forma, a comparação era inevitável. Nada como o sofrimento alheio para dar uma medida da nossa própria felicidade. De algum modo, aquilo foi virando um hábito.

Foi então que, de repente, nossos caminhos se desvencilharam. Dei por sua falta no cinema. Não estava na sessão das dez no domingo, e nem nas segundas ou terças quando o valor da entrada era reduzido. Sentia falta da sua apagada presença nos lançamentos de livros, no reflexo das vitrines e no supermercado. Comecei a perguntar a um e a outro. Ninguém lembrava da existência de Carmen. Por mais que eu explicasse usando as características físicas, ou a estranheza do comportamento, ou a deselegância, ou os cursos:
- sabe aquela que estudou ciências sociais, depois largou para fazer filosofia ou teologia, e por fim fazia contabilidade?
- Menina! Ela trabalhou no banco, na biblioteca pública, depois tinha uma loja de bijuteria...
Nada. Ninguém sabia. Pensei em bater na sua porta. Dei-lhe carona em um daqueles dias de remorso e bondade (ou puro egoísmo – fui acometida por uma vontade extrema de esquecer minhas próprias angústias e não resisti). A ideia foi desencorajada quando comecei a desconfiar que só eu tinha prestado atenção em tão desbotada figura. E juro que, depois de seguidas noites insones, cheguei a cogitar a possibilidade de consultar um psiquiatra. Vai que eu tinha inventado uma interlocutora invisível em um surto esquizofrênico de busca da felicidade. Contudo, não foi preciso recorrer a esses extremos. Fui salva por um número vermelho que me chamava a atenção para uma solicitação de amizade no Facebook. Levei um tempo para responder tentando ligar o nome à fotografia do perfil. A apresentação era sucinta. Um pequeno e deslocado verso de Fernando Pessoa: De viver de ver somente! Não, não era ela. A Carmen do Face tinha muitos amigos, seguidores e estava em um relacionamento sério. Não, eu não conhecia outra Carmen. E depois, aquele poema estava na página que abrimos ao acaso, ao folhearmos uma nova edição da obra poética em um dos nossos encontros casuais em uma livraria. Recitamos juntas sob os olhares desconfiados dos vendedores. Apurando bem a vista, percebi que a cor do cabelo, o brilho nos olhos, a luz e o ângulo bem escolhido lhe davam um certo frescor e beleza, mas no fundo era ela sim. Como aquele enigmático azul encontrado sob a fina capa de gelo nos idos tempos de juventude. Aceitei o pedido e passei a seguir todos os seus posts. Curtindo, comentando e até compartilhando, cada vez mais encantada com a nova Carmen que eu descobria a cada dia. Foi assim que estivemos lado a lado na Torre Eiffel, na London Eye, no Portão de Brandemburgo. Como era bonito de ver que sua vida tinha enfim florescido, de como o número de amigos crescia vertiginosamente. Para minha surpresa, entre os que constavam dos pequenos anúncios diários “Carmen de T. começou uma amizade com...” estavam aqueles a quem eu tinha recorrido no meu desespero quando do seu desaparecimento. Finalmente todos a conheciam e a festejavam.

Seus posts continham frases deliciosas. Recheados de um humor sutil e de acolhimento bem longe da pieguice religiosa ou de autoajuda que, convenhamos, enche o saco até de quem não tem, você há de concordar comigo. Os posts de Carmen, ao contrário, eram um convite ao compartilhamento sem pensar duas vezes. Aquilo era coisa do amor. Não tinha outro meio de entender. Uma transformação tão radical só encontrava explicação nas coisas sagradas. Eros, poderoso Eros filho de Caos, um deus primordial. Educado por Afrodite. Sim, era coisa dele. Nos comentários de uma foto de uma ilha paradisíaca, insinuei alguma coisa discretamente. Chegamos a discutir mitologia com base em um filme que tínhamos visto no passado. Coisa rápida e sem nenhuma profundidade. Foi só. Nenhuma deixa para saciar a minha sede. As fotografias, de bom gosto quase sempre, sugeriam enredos de final feliz. Sabe aquela coisa de duas mãos desfocadas tocando taças de espumantes dispostas sobre a mesa? Ou uma paisagem urbana com luz do anoitecer em que caminham duas sombras? Ou aros de bicicleta se entrelaçando em parques floridos? Belas, tocantes e merecendo muitas curtidas e comentários de desejos de felicidade eterna. Intrigada, me peguei fitando curiosamente os casais de meia-idade nas caminhadas de rua, nas praças, na fila da farmácia. Passei a chegar ao cinema com antecedência só para me sentar em lugar estratégico e ficar de olho nos pares que se acomodavam antes da luz apagar. Em todos os lugares eu buscava, inconscientemente, um encontro real com a nova Carmen. E que fosse casual como sempre fora. E foi tanta a agonia e tamanha a certeza da causa e do efeito, que levantei em uma manhã com o firme propósito de escrever um ensaio sobre o amor romântico, tendo como base o caso de Carmen. A princípio a intenção era enveredar pelos caminhos que explicariam o efeito do sentimento no indivíduo, a tal natureza egocêntrica que dispõe lentes cor de rosa nos olhos apaixonados. O projeto parecia ambicioso e me deixava animada. Juntei livros, afoguei-me em pesquisas devorando numerosas publicações sérias na internet. Para fugir de um discurso inteiramente teórico decidi entrevistá-la. Era preciso cautela. Não podia chegar assim de supetão expondo os horrores que um dia a tornaram invisível. Desconhecia o seu grau de consciência sobre a condição anterior. Iria com calma. Enviaria uma mensagem inbox. Acertaria hora e local. Um café, uma água, o de sempre. Ela não me negaria esse favor. Se fosse o caso usaríamos um pseudônimo, para mantê-la no anonimato ou para preservá-los dos olhares invejosos. Apesar de que isso me pareceu bobagem considerando a publicidade que ela mesma dava ao caso... mas sabe-se lá.

A resposta veio acompanhada de carinhas amarelas e risonhas e um polegar para cima cor de pele clarinha. Ela não via razão para não nos encontrarmos e até se mostrou animada em participar de um projeto que resultaria em um ensaio. Entre acertos das nossas agendas conseguimos marcar um almoço para duas semanas depois. Tempo suficiente para completar outras leituras. Desmanchei-me em agradecimentos e ofereci-lhe uma carona. Era meu caminho e daríamos a nossa contribuição para o futuro do planeta, diminuindo o número de carros no trânsito insuportável da hora do almoço. Ela concordou e pediu que subisse até o seu apartamento. Desejava mostrar-me algo precioso. Eufórica, curti, comentei e compartilhei todos os seus posts por aqueles primeiros dias. Mais por obrigação do que por algum detalhe que me chamasse a atenção. Se bem que, para ser sincera, as postagens estavam mesmo dignas de coraçõezinhos brancos sobre bolas vermelhas e daquelas palminhas repetidas. Pequenos comentários sobre filmes imperdíveis. Livros lidos a dois, com foto de trechos maravilhosos. Passeios por zonas esquecidas da cidade, com breves relatos do valor da descoberta. Uma leveza e descontração que só visitam os que estão de bem com a vida. E não com qualquer vida. Mas uma vida repleta de sentido. Feito aquela descrita por monges que alcançaram o nirvana e se irmanam com a natureza que lhe cerca por mais tosca que a clareira possa se revelar aos não iniciados.

Carmen armou uma rede em algum interstício dos meus neurônios e se balançava languidamente, enquanto eu despertava nas madrugadas, ensopada de suor. Pesadelos horríveis. Por dias seguidos nenhum post, nenhuma foto. Antes do café dei uma checada. Nada. Tudo bem, tentei controlar minha ansiedade com um suco de laranja fresquinho. Aquele era o dia da entrevista e, certamente, ela reservara seu bom humor e felicidade para a nossa conversa. Por mais louco e estranho que parecesse o meu plano, ele estava bem montado e daria bons resultados. Calculei o tempo, atendi telefone, despachei por e-mail uma porção de mensagens encalhadas, confirmei a participação em eventos. Quarenta minutos antes da hora marcada aventurei-me por ruelas e viadutos para encurtar distâncias. Coração aos saltos, pernas bambas completamente guiadas pelo entusiasmo. Fazia tempo que não me sentia assim. Até parecia os primeiros anos de trabalho, logo depois da faculdade, em que a pesquisa me tirava o fôlego. Consegui estacionar em uma sombra a alguns metros da portaria. O prédio era antigo e sem automação. Era um tormento esperar pela disponibilidade do porteiro que também se fazia de jardineiro. Impaciente com a falta de resposta da campainha, gritei e fui atendida de imediato. Subi sem ouvir o que ele tentava me dizer. Dois lances de escada e já estava no segundo andar. O corredor era estreito e escuro. A pouca iluminação entrava pelos cobogós do fundo deixando no chão um rastro de rara geometria, um jogo de luz sinistro e encantador. Certifiquei-me do número, toquei devagarinho um velho interruptor e bati levemente na porta. Uma voz fanha perguntou quem batia. Identifiquei-me enquanto ouvia a primeira volta da chave. Uma jovem se apresentou como sobrinha da Carmen. Estava limpando, recolhendo e distribuindo alguns pertences conforme instruções deixadas de próprio punho na carta de despedida. Carmen havia morrido há uma semana, depois de uma doença prolongada. Deixara um envelope com o meu nome escrito em letra trêmula. O bilhete que acompanhava este conto, e pedia que o publicasse como se escrito por mim, começava com um trechinho de Clarice, retirado de A hora da Estrela: Não se pode dar uma prova de existência do que é mais verdadeiro, o jeito é acreditar: acreditar chorando.

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Inspiração

As redes sociais, a obrigação de ser feliz e o conflito entre mundo virtual e real dos nossos dias.

Sobre a obra

A escrita, para mim, não segue uma técnica específica. Anoto ideias a partir da vivência cotidiana. Neste caso quis contar uma história em primeira pessoa. Criei uma personagem em conflito entre mundo real e virtual e a ambientei no mesmo mundo de uma curiosa personagem narradora.

Sobre o autor

Escrevo desde sempre. Ler e escrever são formas de entender o mundo. Mas, isso ficou por muito tempo reservado à intimidade da satisfação pessoal. Muito mais tarde resolvi estudar Literatura em paralelo com a atividade bancária. Fiz graduação, pós e mestrado acadêmico na área, e hoje me dedico à escrita e à crítica literária e fílmica.

Autor(a): SERGIA ANTONIA M. DE OLIVEIRA ALVES ()

APCEF/PI