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A VELHA MENINA DO ESPELHO

A VELHA MENINA DO ESPELHO

Sim, poderia começar um lindo conto sobre velhos dragões ou magos muito antigos, também poderia descrever a vida de um ancião druida, mas me peguei hoje pensando sobre memórias antigas e quem as povoa.
Tive uma infância repleta de personagens incríveis, todos fizeram parte de meu enredo, conheci quase todos meus nonos e nonas, em linguagem de gente não italiana, conheci quase todos os meus bisavós, que geralmente chamava de nonos, também meus avós e uma infinidade de tios avós, até um tio-avô agregado, Tio Pedrinho, inventor da Turbaína, a original é de Jundiaí e fabricada pela Ferraspari e foi inventada por Pedro Pacini.
Minha bisavó Judith era uma figurinha, grande mulher, muito além de seu tempo, uma pessoa realmente incrível que fez uma diferença enorme na vida de meus pais, não por realmente ser uma parte totalmente ativa na vida deles, mas por pequenas coisas, pequenos conselhos, pequenas atitudes que, hoje, considero muito grandes; era uma mulher muito forte, teve quatorze filhos, perdeu as duas pernas por ser portadora de diabetes, mas sempre estava com os cabelinhos arroxeados e penteados, sempre perfumada e sempre com um sorriso; acho que o que mais me lembro são os finais de ano, um presépio imenso que ela montava na própria sala e as moedinhas de “ano bom” que ela guardava para todos os netos e bisnetos, que não eram poucos obviamente. Fico imaginando quantas histórias se perderam pelo caminho, quanto eu poderia contar da vida dela e de seus muitos filhos, quanto eu jamais soube.
Meu avô Antonio, o Vô-Tóni, ainda é vivo, fui visitá-lo hoje, o último filho vivo de Judith e, temo, não por muito mais. Caí na armadinha da nostalgia, lembrando-me das histórias, pois Vô-Tóni sempre foi um ótimo contator de histórias; as histórias do colégio das freiras são hilárias, ele sempre foi terrível! Ele nos contava que eram obrigados a rezar para tudo, principalmente antes da merendinha e que a Madre Tereza, essa sempre estava em uma das histórias, dizia que um bom cristão deveria sempre deixar a mesa ainda com fome, coisa que meu avô sempre achou estranho e que maior pecado seria desperdiçar comida, então ele se fartava para descontentamento da Madre Tereza. Uma vez foi a uma visita com Nona Judith e serviram sopa, ele estava enrolando para tomar a sopa e foi repreendido pela mãe, baixinho disse a ela que havia uma barata na panela da sopa, constatando ser verdade gritou para todo mundo ouvir: “Que menino mais enjoado!!! Ele não gosta de sopa… vai brincar lá fora menino, agora só vai comer em casa viu?”. As histórias eram o ponto algo de meu avô, eu poderia ficar horas ouvindo os relatos de sua infância, de quando teve tifo e minha nona o carregou por metade da cidade até um médico, ou de quando vendia pão em uma carrocinha ou, a minha preferida: como a família Jahnel veio para o Brasil.
O Brasil possui muitas famílias “Jahnel”, principalmente na região sul, mas a vertente da qual sou descendente veio para o Brasil por conta do casco de um cavalo… sim… meu tataravô, creio eu, era forjador e ferreiro, um judeu na Alemanha antes até da Primeira Grande Guerra Mundial; muitos queriam imigrar para a América e havia uma oportunidade para isso, mas também um teste muito difícil: um cavalo passaria em marcha lenta e os ferreiros deveriam fazer-lhe as quatro ferraduras, somente olhando-lhes o casco enquanto passavam. Segundo meu avô, meu tataravô Josef foi o único que conseguiu fazer ferraduras perfeitas, inclusive para um casco defeituoso do cavalo e eis que foi assim que veio para o Brasil com a esposa para trabalhar nas ferrovias. Se a história é verídica? Não faço ideia!!!! Mas que é linda, isso é.
Meu avô sempre criou passarinhos, canários em sua maioria; houve uma ocasião que ganhou um canário que todos consideraram se tratar de uma fêmea, mas era um macho e passou a cantar até perder o fôlego, minha mãe acabou dando o nome ao canarinho: Ney Matogrosso, hoje seria politicamente incorreto contar o motivo, digamos apenas que ele cantava muito. O querido Ney foi colocado para cruzar com a Wanderleia, uma canária salsa linda e novinha, foi com surpresa que vimos sete ovinhos no ninho. Meu avô dizia que nem todos vingariam pois nasceriam em períodos diferentes, quando o último ovinho eclodiu os demais filhotes já estavam com as primeiras penugens, meu avô queria “aliviar” o sofrimento do pequenino, pois ele não sobreviveria, afinal era pequeno demais para competir com os demais. Obviamente, aos prantos e em meio a berros, eu, com mais ou menos oito anos, não permiti tal atrocidade e comecei a alimentar o pequenino, que por sinal era muito esfomeado. Os sete filhotes vingaram, o meu pequeno se transformou em um canário robusto e, sendo o único macho da ninhada, meu avô o queria de volta; depois de um novo berreiro, fui nomeada oficialmente dona do Ganzola, que viveu conosco por quase seis anos, cantando maravilhosamente bem e sendo mimado.
Lembranças… quem consegue viver sem elas? Creio que escrevo para que elas não caiam no esquecimento, afinal não tive filhos e não passarei para ninguém essas histórias e contos do vovô.
Vô Tóni é viuvo, minha Avó Adélia, Vó Delina, se foi para o outro lado do véu a mais de dez anos, quando criança passava muito tempo com os dois, morávamos no porão da casa deles. A lembrança mais marcante da Vó Delina, além dos maravilhosos suspiros e do bolo de fubá, é a história do “fut-fut meu gatinho”. Sempre fui uma criança agitadinha, mas minha avó tirava um cochilo toda tarde e eu sempre ia junto, seja para ficar brincando com o conteúdo das gavetinhas da máquina de costura, seja para também dormir um pouquinho; mas como já havia engolido dois botões (haviam alguns botões que pareciam realmente deliciosos), minha avó tentava me fazer dormir antes, então me contava sempre a mesma historinha: havia uma velhinha que fazia bolinhos para vender, ela colocava os bolinhos na janela para esfriar antes de rechear com doce de leite, um gatinho tentava roubar-lhe os bolinhos e a velhinha ficava espantando o gatinho assim: “fut fut meu gatinho, não me roube meus bolinhos… fut fut meu gatinho, não me roube meus bolinhos… fut fut meu gatinho, não me roube meus bolinhos...” pois é, isso não parava nunca, era hipnotismo, eu jamais soube se o gatinho deixou os bolinhos em paz, se a velhinha fez um boletim de ocorrência pelo roubo dos bolinhos ou se eles entraram em um acordo e dividiram os bolinhos, eu sempre dormia com essa história de “fut fut”.
Acho que as gerações atuais não sabem o que é conviver com avós e nonos, talvez a falta de respeito com os mais velhos venha daí: não terem alguém mais velho mais perto. Tive contato com avós, com os tios de meus avós, com os pais de meus avós e isso foi muito bom. O pai de Vó Delina, Nono João, era um italianão com um vozeirão, lembro-me das visitas na casa dele, sempre acompanhava minha avó, ele me fazia sentar na varanda e colocava perto tudo que era filhote que tinha por ali: gatinhos, pintinhos, cachorrinhos… minha avó entrava em pânico: “Gato dá asma pai” e lembro do Nono João respondendo: “Que asma Delina! Que mais asma! Você é uma asma filha”. Eu ria muito e me deleitava com aqueles filhotinhos fofos, que acabavam me arranhando e bicando, mas eu adorava aquele contato com os bichinhos, acho que foi o que ele me deixou de mais caro e raro: o amor pelos animais.
Com os avós de minha mãe eu tinha menos contato, moravam na capital, mas os visitávamos ao menos uma vez ao ano, mesmo estando em uma cidade tão próxima, naquela época era complicado ir a São Paulo. Abuelo José era um espanhol, meu bisavô cigano, tinha vozeirão também e quase dois metros de altura, ao menos no meu ponto de vista; a casa na Vila Carrão tinha um quintal enorme, ele plantava cana, milho, tinha algumas árvores frutíferas e muitas galinhas ciscando, adorava explorar aquele quintal. Lembro-me de uma ocasião em que eu e minha irmã brincávamos de bola e ela estava provocando o galo com a bola, Vô Zé, com aquele vozeirão, avisava: “Menina, esse galo é bravo”, mas minha irmã continuava jogando a bola próximo ao galo, creio que Vô Zé repetiu “Menina, esse galo é bravo” por umas cinco vezes antes do galo bravo esporar a bola e sair correndo atrás de minha irmã, Vô Zé riu e completou “Menina, eu avisei que o galo era bravo”, eu estava sentada ao lado dele e ria também, nossa diversão acabou quando Vó Rosária apareceu empunhando uma vassoura e espantando o galo escada abaixo e gritando com o Abuelo sobre como deveria cuidar das meninas sem que elas se machucassem ou se assustassem, minha irmã ficou o restante da visita sem colocar o nariz para fora da porta da cozinha, levou somente umas duas bicadas, não era para tanto.
Hoje lembrei de muitos que se foram para o outro lado do véu e de momentos que estão guardados em minha memória e em meu coração; creio que ver meu avô tão pequeno, tão sem forças para nem ao menos conseguir contar uma história, vendo seu olhar de súplica pedindo permissão para partir, me fez entrar nessa armadilha nostálgica. As lembranças me fizeram chorar sim, mas também rir, pois muitos dos personagens de minha história não foram esquecidos e houveram passagens em minha vida que me levam ao riso. Estranhamente chorei muito ao chegar em casa, olhei meus olhos marejados no espelho, percebi meus cabelos brancos e os vincos de meu rosto, vi no espelho um toque de eternidade ao perceber a mortalidade também em mim, embora com horizontes mais amplos que outrora, ainda sou a menina que dormia com os “futs futs” da Vó Delina, que abraçava os gatinhos na casa do Vô João, que ria junto com o Vô Zé vendo o galo correr e bicar minha irmã, a mesma menina que agora tem quarenta e nove anos, sem medo do tempo ou da idade, com sonhos e projetos futuros, uma menina focada em ser feliz a cada dia do eterno, uma menina que hoje é mais velha que os próprios avós quando nasceu e que se reconhece assim: uma velha menina no espelho.

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Inspiração

Meu avô está partindo, está morando com uma de minhas tias, mas já não se alimenta direito e está precisando de ajuda constante, cuidados constantes, sei que a visita de hoje foi uma dolorida despedida, então resolvi lembrar-me de pessoas, fatos e histórias de minha infância.

Sobre a obra

Utilizei tão somente lembranças e coração, algumas lágrimas também, devo confessar, mas ficou muito bonito.

Sobre o autor

Sou mais coração que mente, isso com certeza, acho que escrevi esse pequeno conto para não deixar essas lembranças morrerem, já que não tenho filhos para passar essas histórias, mais alguém vi ler, mais alguém vai saber, mais alguém vai lembrar e todos serão, assim, eternizados.

Autor(a): ALEXANDRA APARECIDA JAHNEL PASCOAL ()

APCEF/SP