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Cercas de bambus

Cercas de bambus

O que mais me recordo dos meus tempos de menino, como tantos outros que tiveram a oportunidade morar em casas simples, na roça ou na cidade, ou ainda em um lugarejo perto ou longe, era o fato de tudo ser muito acolhedor. Ainda hoje, nos bairros mais populares, nos deparamos com cenas das quais alguns de nós vivemos na infância, sem os muros que circundam nossos "casulos" e sem as escadas ou elevadores que dão acesso aos "apertamentos". Dias atrás, passando por uma estrada vicinal, vi uma molecada faceira, numa sujeira só, correria e poeira da cabeça aos pés descalços, brincando de pique-pega ou apostando corrida. Sabe-se lá se algum daqueles serelepes não estaria com o dedão arrebentado - ou como dizíamos, sem tampa - diante das pedras soltas daquele chão?

Vendo os moleques brincando, diminui a velocidade do carro para perceber alguns detalhes. Vi algumas moradas sem reboco; outras somente no chapisco: acinzentadas, mas com janelas coloridas no capricho. Algumas delas com cortinas surradas e floridas, escondendo a intimidade do lar. Uma mãe, na porta da casa, talvez aflita por olhar a sua caçula toda descabelada correndo solta pela estrada, gritava o famoso "volta aqui". E entre as casas, bem como entre cada tapera e a estrada, as cercas de bambus marcavam cada divisão. Todas construídas com muito capricho: cada bambu, cortado cuidadosamente ao meio, sendo a côncava propositadamente virada pra casa e a convexa voltava-se para quem passava do lado de fora. Assim, quando nova, aquela trama toda verde do lado da estrada e aos poucos ia amarelando e desbotando com o sol e chuva.

Em Pocinhos do Rio Verde, lugarejo pertencente ao município de Caldas/MG, morei na Rua D'Ambrósio, número 123. E a divisão com o vizinho era também de bambu que alguns causos saltam com as minhas lembranças, pelas frestas entre um e outro, onde a luz possa ser transpassada. A demarcação era a maneira de estabelecer o cuidado que cada um precisava ter. Havia, entretanto, um portão do mesmo material, cuja tranca era apenas um pedaço de arame, ou mesmo um cadarço velho, para não ficar aberto o tempo todo. Por ali as vizinhas trocavam farinha de trigo por açúcar, pó de café por manteiga fresca. Havia um cachorro do lado de lá que ficava em um cercado à parte o dia todo e somente mais tarde, perto da noite, era solto para que não corresse atrás de nenhuma criança desavisada.

Aquela casa também fazia vizinhança com o rio; do outro lado da margem, o redemoinho que dava medo, bem abaixo do barranco que ficava atrás do hotel Rio Verde. Não havia nenhuma precaução física; somente o juízo - ou pouco juízo, sempre alertado nas palavras e safanões das mães cuidadosas que procuravam colocar medo nos filhos em função dos pesadelos que tinham, bem alimentados quando alguém chegava noticiando algum afogamento. A força vinha da fé, pois logo corriam aos pés da santinha protetora, acendendo uma vela, para não deixar nada de mau acontecer a nenhuma criança do trecho.

À frente da casa havia um muro bem baixinho, só para não entrar cachorro, que dava para a rua de terra. Dois ou três degraus para evitar as jararacas desavisadas. E mais adiante, ao atravessar uma rua de seis ou sete metros, o rio. E também uma pinguela (para quem não conhece, uma ponte simples feita com dois grandes troncos e tábuas sobrepostas) sem corrimão, que nos levava aos fundos da escola onde frequentavam os estudantes não só de Pocinhos, mas também da redondeza. Vinham meninos e adolescentes do Capão da Égua, do alto da serra onde morava o seu Bentão, da estrada do Taquari, das terras do seu Jordão no caminho para Caldas, entre outros lugares. E aquele que se apresentava "metidinho" logo descobria que ficaria isolado ou iria brigar e apanhar muito dos moleques que andavam descalços, mas que tinham uma força de quem estava acostumado a fazer trabalho pesado em suas casas, como capinar, cortar lenha e roçar pasto. Naqueles dias, qualquer um poderia entender que a vida não era fácil para a maioria das crianças que evadia facilmente das tarefas escolares pelos compromissos na roça que gerava subsistência. E também pela distância a percorrer diariamente. Transporte escolar na década de 1970? Nem em sonho...

Até a escola era cercada em um dos lados com uma velha cerca de bambus pela qual atravessávamos por um buraco feito cuidadosamente por nós mesmos, só para não ter que dar a volta e entrar pelo portão da frente. Economizávamos uns 70 passos de criança; porém, era necessário dar um belo salto para atravessar o que chamávamos de buracão, ou seja, uma vala de mais ou menos uns 90 centímetros de largura e um metro de profundidade, que delimitada a área por mais ou menos uns 30 metros de cumprimento. Ali começávamos a entender na prática a matemática, a física, a química, além de outras matérias mais avançadas como negociação e economia, pelo fato de exercitarmos a persuasão aos demais a vantagem de se chegar mais rápido mesmo correndo o risco de cair no buraco.

Mas voltando à rua D'Ambrósio, lembro bem das utilidades do cercado: para as mães, servia para amarrar um arame no mourão de sustentação até uma laranjeira, tornando-se um belo varal para secar as roupas; os tecidos mais pesados e grosseiros, como calças e panos de chão, a própria cerca servia para tal. Para os moleques, quantas vezes, foi esconderijo para não ser percebido pelo outro lado na hora do pique esconde, apesar de não ser muito eficiente. Mas a criança tem o poder de tornar-se invisível. Essa certeza eu tinha e nunca contestei mesmo sendo descoberto tão rapidamente após o "trinta e um de abril, lá vou eu". Depois, no verão, pegávamos aleatoriamente alguns bambus para construirmos as arapucas e tentar caçar alguns sabiás que vinham visitar os pés de frutas. Vasculhávamos dentro de casa barbante ou linha para amarrarmos no gatilho da arapuca. Esperávamos os desavisados passarinhos. Tentávamos ficar bem escondidos. Quase nunca dava certo, pois ninguém ficava quieto e um minuto de espera era o mesmo que perder o dia inteiro. A bronca vinha mais tarde quando uma das mães percebia a arte com a falha na cerca e uma armadilha perdida no meio da horta. E era fácil de justificarmos que concertaríamos no dia seguinte buscando matéria prima no bambuzal do parque do balneário (até hoje existe), onde os bambus eram cortados a duras penas com pequenos canivetes ou facas de cozinha praticamente cegas. O transporte virava outra farra, pois os riscos pelas ruas de terra deixavam a imaginação ainda mais fértil. Daquela tarefa surgia o projeto de construir pipas com pequenos filetes "lapidados" cuidadosamente com os canivetes.

O fundo do terreno das casas dava para o Morro do Galo e a proteção natural era o mato que entrelaçava com qualquer material que fosse colocado. A subida íngreme impedia qualquer movimento morro acima ou abaixo, a não ser pela trilha que levava ao cume onde encontra-se uma igrejinha. O capim gordura imperava naquele lugar. Uma vez, vi aquela vegetação ser eliminada por um incêndio que causou preocupação em toda a vizinhança. Os estalos ouvia-se da escola e quando me aproximei de casa nem pude entrar pelo medo e calor. O vento ameaçava espalhar as chamas, chegando bem perto da nossa moradia. No outro dia, víamos o morro todo escuro. Mas nada melhor que o tempo e a chuva, que aos poucos reconstituíam a beleza do lugar. O cinza das cinzas que tomou conta após o fogo, dia a dia, dava lugar novamente ao verde que surgia do chão duro e pedregoso. Com um pouco mais de tempo, o tom avermelhado daquela vegetação típica.

Sei que não é de hoje que o bambu é utilizado no mundo todo. É uma planta servidora e sustentável. Não tem preguiça de crescer e se é cortada renasce com maior vigor. Se lembrássemos que foi tão útil em tantas vidas e histórias poderia nos ajudar a perceber quantas pessoas simples e humildes foram importantes em nossas vidas. Eu me recordo do Biguá e do seu Tião Ferreira que limpavam as ruas do lugar para que os turistas e moradores se sentissem bem.

Quem é importante? Aquele que é digno de respeito e deferência; de forma pejorativa, pode ser aquele que é arrogante ou pedante. Mas o que importa não é o que falamos, nossas palavras, mas sim como fazemos os outros se sentirem, nossa acolhida, nossos laços...

Um cercado, como o que foi relatado, pela minha ótica, é digno de respeito pela sua forma singela e eficaz de construção, que não veda totalmente a visão e o espaço, e que cumpre sua missão. Tantos muros são construídos, altos, intransponíveis, frios, belos, perfeitos, rebocados, praticamente indestrutíveis. São eficazes em separar, em delimitar o espaço que poderia ser "nosso", mas que cada um escolhe que seja "seu". Poucas histórias que aquecem o coração surgem dos muros; inúmeras nascem e florescem pelas cercas de bambus!...

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Inspiração

Minha infância foi muito feliz e gosto de recordar dos momentos vividos em um lugar simples e muito divertido. Relacionar as minhas histórias com situações antagônicas do cotidiano atual é a forma que tenho para questionar o mundo. Não querendo ser o dono da verdade, apresento o meu ponto de vista para refletir sobre coisas boas que abandonamos.

Sobre a obra

Escrever só faz sentido se tiver emoção em algo que faça sentido para quem escreve. Tudo bem que não escrevo só pra mim... Por isso, busco abrir algo do que vivi para aqueles que buscam refletir comigo. De forma simples na escrita, tento pelo menos não rebuscar as frases para que também faça sentido para quem lê.

Sobre o autor

Eu gosto de fotografar natureza, paisagens, plantas e animais. Normalmente publico em minha página do facebook ajudando a divulgar as belezas da minha terra natal, Caldas-MG, bem como a região do Sul de Minas. Também gosto de escrever contos e poesias desde a adolescência. Estar em contato com esses mundos me faz viver e não morrer.

Autor(a): MARCOS EDUARDO DE ALMEIDA ()

APCEF/MG