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PAIXÃO SEM FIM
PAIXÃO SEM FIM
A tarde é de maio. Bóreas, o vento norte, cortante e frio, traz um cheiro triste que envolve a praça, sussurrando em ondas, o fim do verão. A poesia outonal espalha suas tintas na tela numa estética de amarelos, beges, marrons e alguns verdes perdidos nos cantos que remetem a um Renoir de tons pastéis, envelhecido pelo tempo. A Lua vai linda, no mesmo céu onde a réstia de sol retoca os últimos tons púrpuros das copas, criando um agradável bucolismo na paisagem. Não fosse a brisa brincando com alguns ramos finos, poder-se-ia dizer que realmente é uma tela. No centro, uma senhorinha recorda e observa o passado diante de seus olhos, uma película de um lindo filme de época que não volta mais, enquanto semeia farelos de pão aos pombos. Em um outro banco, um violeiro solitário ponteia as cordas, numa triste canção de um compasso grave, lento e solene, enquanto observa a cuia sem moedas, esperando alguma de algum misericordioso. Noutro, o jovem casal cria e alimenta juras de amor e paixão eternas, que ainda não sabem, mas jamais cumprirão. O chão se move e se contorce sob os pincéis de Dali, criando desenhos novos a cada brisa fria. Como são interessantes as folhas caídas; arrastadas pelo vento, como velhas criaturas rastejando pelas pedras da praça, se agarrando às gretas com unhas de dedos esquálidos; os nós à mostra e os tendões ressequidos e quebradiços; parecem gemer na vontade de voltar aos galhos, querendo ser verdes de um novo que não volta. As folhas... Cruel é o tempo em demasia com elas; as traz e as leva com tanta brevidade, que passam despercebidas, dependuradas nos verdes dias de suas juventudes.
Leda vontade. O tempo dá lugar ao vento, que brinca com elas, levando-as de um lado a outro e, é nessa brincadeira que as leva para o lado norte da praça, onde um banco de madeira sustenta um corpo de um homem, inerte e solilóquio.
O púrpuro do arrebol reflete a luz nos cabelos brancos, resultado de sóis e luas de tantos outonos; a tez é de alguém que há muito se perdeu do menino que sempre nos abandona, quando a juventude parte despercebida; a pele áspera, se revertida em nitrato e revelada em laboratório fotográfico, imprimiria um álbum de fotos alegres e tristes, de tudo que já viveu e experimentou; a barba por fazer e suja de nicotina refletem um leve e breve desentendimento com a vida; as roupas amarrotadas denunciam os dias de solidão e que a estética já não tem importância. Os olhos castanhos, semi-cerrados, sob as pesadas pálpebras e as densas sobrancelhas, remetem aos olhos de uma águia que, com a experiência e a vivência nas nuvens e nos penhascos, perdeu de vez os medos das alturas e dos azuis. As retinas, como lentes de flechas, fotografam e penetram a lúgubre paisagem; ali ele assiste a um filme antigo numa melancólica tela. À sua frente, um fino fio de fumaça dança e dissolve no vento; entre os dedos, um diminuto cigarro solitário solta seu último suspiro. A brasa queima a pele, amarelada pelo alcatrão. Ele nem percebe que o fogo do cigarro, como o tempo, se aproxima em silêncio de serpente e quando percebe já é tarde. A picada é certeira, a peçonha se instala e o efeito é irreversível.
Observa as folhas rastejando pela praça; lembra seu pai; como ele era verde aos quarenta anos; secou, caiu; voltou ao pó de onde ele veio.
Acontecera com o pai, mas nunca aconteceria com ele. Não como acontece com as folhas. Às vezes acreditava a vida longa demais; tão longa que lhe dava tempo para descobri-la uma grande eternidade entediante e não dar valor aos tempos verdes; afinal, sempre teve tanto tempo pra tudo. Tempo pra reconquistar os amigos perdidos no tempo e no espaço; pra fazer aquela viagem programada há anos; plantar aquela semente; acariciar aqueles cabelos daquela moça, que esvoaçaram tão perto de suas mãos; roubar aquele beijo, daquela boca que passou tão perto, tão perto, que podia ouvir o sangue correr nos lábios; declarar aquela paixão que o encheu de vida... Não fez e quando fez contas, tinha apenas sessenta anos de idade e se fizesse uma boa plástica, poderia enganar muitos, dizendo que eram somente cinqüenta e oito. Daria tempo pra tudo ainda. Afinal, tinha só sessenta anos....ou teria se perdido nos guetos do tempo e seriam setenta? Quando se encontrou, a conta já não mais, nem menos, fazia diferença.
No lado sul da praça, outro banco sustenta um corpo de mulher. A brisa de maio acaricia, brinca e valsa com as mexas de seus cabelos negros que o tempo olvidou de pintar.
Os olhos oblíquos, de serenidade angelical, espadas em bainha, revelam alguém com determinação de âncora. Os lábios finos ainda guardam a maciez sedosa da infância, apesar das várias décadas. O corpo esguio com formas finas e leves, remetem a uma escultura exagerada nas delicadezas. Os dedos longos e finos e as unhas por fazer, desnudam a alma descuidada de quem experimenta e desacredita da vida e perde a esperança.
Sua altivez a destaca de tudo ali. A espinha ereta, o queixo para o horizonte e os olhos tranqüilos, revelam a mulher felina, guerreira, segura e decidida.
Na brisa, ela sente os cheiros da praça; desde muito cedo, o olfato sempre fora o sentido predileto e o que ela mais havia apurado e brincava com os odores; o cheiro dos pombos; a naftalina, impregnada no tecido puído da senhorinha; as últimas flores de um velho ipê, pingentes dos galhos, relutantes em cair; o cheiro seco das folhas que rastejam; a ausência da serotonina no violeiro a compadece com sua tristeza e sua cuia vazia.
Ela sobrevoa a praça, observando os mínimos detalhes, reconhecendo o território. A ela, os desenhos das folhas se arrastando pela praça é agradável. Pequenos viventes que até ontem, dependurados, cumpriam seu papel verde e hoje cumprem o seu papel seco de voltar ao pó. Esse ciclo sempre a deixou embevecida. Sempre soube que seu tempo é escasso; tanto, que nunca deixou que nenhum momento passasse à sua frente, sem que experimentasse pelo menos uma gota, guardando cada sabor de cada uma delas em prateleiras, catalogados, para lembrar de nunca esquecer. Tantos momentos, coletânea de lembranças e vivências...
Seus olhos, longe, assistem a fragmentos desses velhos filmes quando um fio da brisa toca seu rosto, trazendo um cheiro que ela ainda não havia sentido ali. Esse lhe traz sentimentos que ela pensava mortos e enterrados há muito tempo. Calafrios que iniciam nas mãos e percorrem os braços até os pés, deixam neve e fogo por todo o corpo arrepiado e nessa lúcida loucura, ela deseja e acredita que seu olfato a tenha enganado. Dispara a flecha, que atravessa a praça de sul a norte e o olhar é certeiro. O alvo permanece circunspecto e solilóquio como antes, inerte, ele não percebe a espreita dos olhos dela. Ela, relutante, teima em manter a certeza do engano.
A praça assiste a tudo, impávida. Dela, metade é espectador, invisível, a outra metade é palco, lugar dos mais diversos dramas, sempre pronto para o espetáculo. O cenário é perfeito; os figurantes - pombos, senhorinha, violeiro - sempre a postos, profissionais da arte das cenas; a sonoplastia - vento, folhas secas, pássaros - é a sinfonia sob a batuta do maestro. O espetáculo continua.
Bóreas dá lugar a Noto e o cortante vento frio do norte agora é uma brisa que sopra quente e branda rumo ao sul esvoaçando os cabelos dela e penteando os dele. Ela ajeita a cabeleira negra, ajuntando os fios que espalham sobre o rosto sem perceber que espalha seu cheiro de falena no ar, mas sabe, as mariposas são as únicas que podem lançar e sentir o cheiro dos parceiros por quilômetros. Por quilômetros...
O cheiro triste que era o dele, agora se mistura a um outro cheiro, o doce, dela, e dançam enlaçados pela praça, um cheiro de valsa com um dulçor delicado e entorpecente que chega a cores, tons e formas de saudades, preenchendo as entranhas dos dois.
As lentes mudam o foco e a abertura. Eles procuram no ar, cores de um cheiro perdido no tempo.
Ele mira o arrebol, cerra os olhos, deixando apenas uma fresta; abre as narinas, aguçando seu olfato de falena, procurando o desconhecido e invisível perfume e sente na língua, o gosto do cheiro doce. Ela fecha os olhos e sente o cheiro roçar leve sua pele como roçam as unhas, percorrendo o corpo inteiro. Estão tomados, por dentro e por fora, pelo olor que lhes causa calafrios e calores. Um absinto. Tudo é tão incrível e impossível e real, e o que era real não é mais. Agora, o que se realiza toma forma e é a realidade, deixando a outra irrealidade pra trás.
Os corações imensos e velozes já não cabem no peito. O sangue crispado, corre à flor da pele, aflora em um e deságua no outro, fora das veias, como águas caudalosas numa tempestade com ondas incontroláveis num rio revolto e infinito de emoções; recordos vagueiam; nasce um suave sorriso comum; os olhos procuram, nos guetos e becos perdidos do tempo. Onde foi que nos perdemos?...Onde foi?...Onde foi que eu me perdi?... Onde foi?...
É tudo tão igual e tão diferente... Ponteiros de um velho relógio giram velozes; um catavento ao contrário, trazendo recortes do passado que juraram nunca mais. Nunca mais... Nunca...
Lembranças voam e dançam diante de seus olhos, numa valsa quase infeliz; os ponteiros cortam o tempo e no fundo, o cenário continua o mesmo. O mesmo que era no passado de um futuro que juraram nunca mais. Entorpecido, ele sorri, como sorria o jovem poeta sempre que via e escutava aquele cheiro que lhe travava a língua com seu sabor agridoce e ela sorri, como sorria toda vez que aquele cheiro lhe cravava as unhas, gelando e queimando seu corpo.
Ainda ouviam ecoar os últimos momentos...Nunca mais... Nunca... Os corações pequenos, apertados, cortados, sangrando, doendo, mas mesmo assim, nunca mais... A dor... Nunca... A saudade... Mais... Mais...Mais...
E depois de tanto tempo, depois de tantos jamais, a dança recomeça. Um tango, num palco-tela, que só os dois podem ouvir e compreender. Se os vissem, seriam julgados loucos; outros não ouviriam a música; não compreenderiam a dança; e a música é bela... Tão bela... Singela, leve, silenciosa e inaudível para o resto da praça como fora no passado.
Parece que foi ontem. Ela nem era tão bonita. Nem ele. Duas belezas que só podiam ser notadas por eles. Ela lia um livro, plantada no banco da praça, como qualquer outra flor plantada ali, sem chamar a atenção. Ele deveria ter passado sem percebê-la. Teria sido tão mais simples, mas não... Ele percebeu, diminui o ritmo dos passos e viu; seu coração gostou do que viu. Ela percebeu o ritmo dos passos e parou a leitura. Olhou por cima do livro e seu coração gostou do que viu. Ali, os olhos se sangraram; dois punhais; era o convite para a dança; e a dança teve ali seu inicio. Ele se senta ao lado dela como se nada tivesse de interesse naquele banco. Ela volta à leitura como se nada tivesse de interesse em quem sentou.
O ritmo acentua notas aos compassos. Ele se levanta e se senta num outro banco de frente a ela e, dissimuladamente a observa. O livro, então, já é um simples artefato, transparente e quase invisível, sem páginas nem letras. Apenas um argumento para separar a metade dos olhos dela da metade dos olhos dele. Ela gosta. Ele gosta. Naquele momento, ninguém no mundo era mais feliz que eles, mesmo sem motivo algum, aparente. Depois de algum tempo, sem uma única palavra, partem sangrando. Jamais voltarão a enxergar com os mesmos olhos de antes. Guardarão aqueles olhos por toda a eternidade.
No outro dia, ela chega na praça; um domingo que ainda traz o frio e o orvalho da noite que há pouco findara. Com uma mirada por sobre, não vê o que esperava, apura o olfato e tenta sentir o cheiro, então confirma que ele não está ali. Se senta no mesmo banco do lado sul, abre o livro e retoma a leitura. Num repente, Bóreas anuncia que existe um cheiro diferente na praça; um fino fio de brisa, roça suas narinas que se abrem, aguçando o sentido. O cheiro. O cheiro dele. Ela não desvia os olhos do livro pra saber que ele se aproxima; o vento conta com detalhes todas as distâncias; o perfume, que não é o mesmo do dia anterior; a roupa traz o cheiro de guardado e que foi desengavetada para alguém especial. Os olhos fixos na letra A, a primeira do texto que quase há uma hora começara a ler, não sabem o que fazer. Sabe que ele está perto; muito perto; as mãos gelam e os pés petrificados e paralisados tremem e queimam por dentro. Se ela soubesse que ele tropeçou e quase caiu na entrada da praça quando viu que o banco estava cheio de felicidade que ele não acreditava que estivesse; que suas pernas tremiam como varas verdes e quase não suportaram o peso do seu franzino corpo, quando a viu sentada ali, dariam gargalhadas de suas situações ridículas de adolescentes que não eram mais.
Ela baixa o livro lentamente e por um instante, pelas frestas, os punhais se cruzam e se sangram; nos olhos, o brilho que só se vê nos olhos dos amantes apaixonados. Ela sorri com se dissesse: Bobo! Ele sorri como se dissesse: Linda! É o sinal de que o ritmo da música vai mudar. A evolução é linda. Os olhos deslizam pelo palco sob um tango de Piazzolla. Os corpos queimam, cada vez mais próximos, mesmo à distância; as mãos, as bocas, as peles, os corpos, sorrisos furtados... Tudo é tão diferente de tudo que já haviam vivenciado.
À aquela distância eram felizes. Sabiam que se aproximassem mais, aconteceria como nas outras paixões que nascem como furacões e breve desaparecem, deixando rastros de destroços. Era uma experiência louca e única.
A vontade de se aproximar dá lugar ao êxtase de brincar de longe com a paixão.
Nos dias que seguem, o tango atinge seu ápice. Os corpos já não tem mais segredos. Os olhos já sabem cada movimento que os do outro irão fazer. Já conhecem o desenho da melodia, do compasso, do ritmo. Não tem mais nada pra desvendar. Daí pra frente, é só dançar. A praça a tudo assiste, impávida e inerte.
Finda a dança, ele levanta e se vai, deixando no rastro o cheiro que ficará guardado na caixa do tempo. Já distante, se volta, olha longamente todo o cenário e segue e some entre as casas. No banco que ele se sentava, uma folha dobrada foi o que ficou. Ela se assegura de que ele não está mais em cena, se levanta e apanha. Desdobra cuidadosamente e o poema...
A paixão é um raio
Que cai arrasando o mundo
E num segundo
Meia hora, hora e meia
Desmancha na praia
Esfuma na areia
É um cavalo
Corre desenfreado
Milhas e milhas
Sem saber onde, quando
E se vai chegar
É rio que não se represa
Ferida que não tem cura
É fera que vive presa
Saudade que não se atura
Indelével feito figura
Que a gente tatua
Pra não esquecer de lembrar
E a leve certeza de um dia
Desapaixonar
Ela sorri o sorriso dos contentes, dobra novamente o poema e o guarda como quem guarda uma rosa por entre as páginas do livro preferido para desidratar, perder a vida e perpetuar.
Ele sorri, caminhando pelas ruas da cidade. Eles sabem que a história será eterna. Não teve fim e por não ter meio, nunca vai terminar.
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Inspiração
COMO SURGEM TODAS AS IDEIAS. DO ÓCIO... FOI ASSIM.
O QUE MOTIVOU A ESCREVER, SINCERAMENTE, NÃO SEI.
Sobre a obra
QUINTANA DISSE: NÃO TEM PORQUE INTERPRETAR UM POEMA. O POEMA JÁ É UMA INTERPRETAÇÃO.
CREIO QUE VALE PARA AS OUTRAS ARTES.
A OBRA FALA POR SI SÓ.
CADA UM, DO SEU PONTO DE VISTA TERÁ A VISTA DO SEU PONTO. DEIXEMOS ASSIM...
Sobre o autor
NÃO ACREDITO EM TALENTO. CREIO EM EXPERIMENTOS, PERSEVERANÇA, TEIMOSIA, BUSCA, GANA, GARRA, VONTADE, DETERMINAÇÃO E LIVRE ARBÍTRIO, PARA FAZER E TER, OU NÃO...
SOBRE MIM, ESTOU BUSCANDO AINDA.
E TÁ DIFÍCIL...
Autor(a): LAUDISMAR DEPTULSKI ()
APCEF/ES
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