Talentos

Dumont

Era uma vez um gato que nasceu com asas. Mais! Tinha cabeça amarela e corpo esverdeado, levemente mais claro entre o ventre e o rabo, e ombros vermelhos delineados com amarelo. Quando abertas, suas asas apresentavam partes avermelhadas e de um azul-escuro nas extremidades. Chamava-se Dumont, em homenagem ao inventor da aviação. Herdara essas características do pai, um papagaio conhecido pela alcunha de Don Juan. Por causa deste, aliás, ninguém mais em muitos quilômetros queria ter como animal de estimação um papagaio-fêmea. O que não se imaginaria, porém, é que as felinas também poderiam ser alvo da sedução do papagaio. Dumont nasceu, pois, dessa inédita conquista de Don Juan, que inexplicavelmente experimentara uma paixão irrefreável, e correspondida, pela gata Gisele, assim batizada em homenagem à internacionalmente famosa manequim brasileira. Era, de fato, uma gata!

Nosso herói, entretanto, tornou-se um adolescente infeliz. Apesar da formosura que herdara da mãe, e da coloração tipicamente tropical do pai, Dumont era depressivo. Gata alguma se interessava por ele. A beleza e o dom de voar eram, contraditoriamente, o que o segregava e submetia ao preconceito de qualquer uma por quem se enamorasse. Por isto mesmo, ao espírito libertário, já próprio dos felinos, veio somar-se o hábito de voar para as regiões circunvizinhas, de onde voltava só muitos dias depois, ainda mais triste.

Um dia, Dumont rendeu-se à doença e nem mais alimentar-se queria. Literalmente definhava. Não bastasse, Don Juan e Gisele lentamente morriam também, pela culpa que os castigava por terem ousado amar-se, sendo embora tão diferentes. Os maiores psiquiatras e psicólogos veterinários da região e além-fronteiras foram chamados, sem sucesso. Parecia que uma tragédia estava para instalar-se, irremediavelmente.

Aguardava-se, assim, o precoce e doloroso fim para aquela singular e amorosa família, quando, num dia que parecia ter nascido mais belo do que todos os outros, Dumont recebera uma inédita e barulhenta visita: “Krik-kiakrik-krik-krik, kréo”, cantarolava-lhe uma formosa papagaio-fêmea, recém-chegada na vizinhança, mirando-o com doçura e alegria. Dumont, que jamais conhecera uma na vida, sentiu as pálpebras erguerem-se. “Krik-kiakrik, kréo, krik-krik”, disse-lhe de novo a bela papagaio. Então, como que por milagre, a cor íris-amarela dos olhos de Dumont se reacendera. Tropegamente foi se levantando, e sob o olhar estupefato de Don Juan e Bundchen, saiu voando com ela.

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Inspiração

Queria escrever algo sobre um animal doméstico, mas que tivesse a liberdade como seu maior dom. Então, pensei de cara num gato. Mas o gato, apesar de suas imensas habilidades, não voa. Dei-lhe asas. E aí enveredei pelo gênero do fantástico (pretensiosamente). O animal, entretanto, não seria livre sem amor. Então, ele amou. E só aí libertou-se.

Sobre a obra

Não escrevo pensando nas técnicas que venha a utilizar. Acho que são aplicadas meio que sem a exata percepção de que o estou fazendo. Neste conto tive um certo trabalho para construir as personagens e torná-lo verossímil, dado o gênero (fantástico). É um drama, mas com pitadas de humor.

Sobre o autor

Comecei a escrever em 2006, durante um período de quatro meses de licença médica, essencial para que eu pudesse enfim perceber que estava tendo o que talvez seja a chamada inspiração. A vida estava lenta, portanto própria a que eu pudesse me ver e sentir as minhas reflexões. Quando dei por mim, estava escrevendo crônicas, contos e poesias.

Autor(a): ANDRE FALCAO DE MELO ()

APCEF/AL