Talentos

Vasquinho

1

Reza a lenda que em tempos quase imemoriais habitou estes ambientes e se sentou num destes guichês aqui da Agência Anhanguera um ser chamado|João Vasco. Vasquinho.
Sim, trabalhou! – dizem os mais velhos.

Dizem que o Vasquinho era cumpridor dos horários, entrava e saía na hora.
- Se chego15 minutos atrasados, - dizia ele - saio mais cedo 15, que a gente tem que ser justo, né?

Dizem que era especialista em FGTS, era a ele que os colegas recorriam na hora das dúvidas cruéis. Só tinha problema se fosse fora de hora.
- Não posso agora – costumava dizer – já são quatro e dois. Cobro dé-real.

Dizem que nos últimos meses de trabalho começou a sentir o peso dos anos, aí pra ficar mais leve, começou a vir de bermuda. Pesava menos.
- A Caixa devia adotar um uniforme assim, dizia

Reza também que uma vez o gerente queria mudá-lo de área.
- Em que área você se sentiria melhor? – perguntou.
- Na área lá de casa, tem um beija flor que passa lá de vez em quando.

O irmão do Vasco – a coisa é de família – tinha lá seus medos.
-Só tenho medo depois de aposentado é de aparecer aqueles feriados na quinta ou na terça e eu não poder mais emendar.

Um dia destes, dizem, esse ser retornou à Agência. Alguns o reconheceram. Tinha um papelzinho na mão.
- Dias atrás – disse ele - tive um problema de coluna, coisa que eu não tinha mais, depois de aposentado. Só depois que estava na porta da agência foi que lembrei: não precisava mais trazer atestado. Coisa que sempre fiz com muito gosto, mesmo se estivesse de cama.

2

Ontem, para deleite de alguns privilegiados, Vasquinho apareceu na Agência já próximo do fechamento. Foi apresentado por um colega que o conhecia, os outros ficaram admirados com aquela presença, mas resistiram em pedir autógrafo. Num certo momento, alguém perguntou:
- Você não se aborreceu com a crônica que o Félix fez de você?
Claro, alguém se aproveitando da minha ausência, atiçando a lenha.
- É gratificante – disse o Vasquinho – saber que alguém se preocupa em passar adiante a verdadeira pessoa que a gente é, o pensamento da gente. Nossa contribuição com a posteridade.

Quando chegou no Atendimento Expresso, foi lá dentro cumprimentar alguém, aí achou aquele cubículo que criaram lá, sem saída. Serve só pra guardar cartazes em desuso e algum material de consumo. Os olhos deles brilharam.
- Tá vendo? No meu tempo não tinha isso, um espaço assim vago, pra gente estirar a coluna.

Só tem uma pessoa cuja presença deixa o Vasquinho desconfortável: O Mota, que eu também não entendo o porquê, nasceu no dia do trabalho.
- Por que não fui eu que nasci nesse dia? Logo ele? Mais que ele sempre trabalhei. No mínimo, o dobro!

Quando o conheci a umas duas décadas, se perguntavam se estava perto de aposentar, ele respondia:
- Faltam quinze anos, nove meses e dezessete dias.
- Faltam quatorze anos, onze meses e um dia. – Assim ia.
O discurso mudou num detalhe depois da greve. Na sua religião trabalhista, nunca greveava. Um dia fez greve e viu que aquilo era bom. Adicionou aos costumes. Primícia. Tanto que passou a responder assim:
- Faltam quatro greves, um mês e dez dias.

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Inspiração

A minha inspiração foram as piadas muito comuns dos colegas, sobre trabalho, folga, sobre a sexta e sobre a segunda. Um pouquinho da convivência com vários colegas bem humorados, das piadinhas que surgem no dia a dia do economiário.

Sobre a obra

A minha técnica é a exploração da linguagem comum, da forma mais natural, buscando uma linguagem eficiente e limpa. Procuro não encher muita linguiça com coisas que não são importantes para a história.

Sobre o autor

Tenho 56 anos, me formei em Artes Visuais pela UFG nos idos de 1984 e cheguei a pensar que era um artista plástico. Com o tempo meu veio artístico foi se deslocando para a literatura e hoje começo a acreditar que sou escritor. Ah... Sou autor de dois livros já publicados: um romance "Comedor de papaterra" e um de contos "Matador de onça".

Autor(a): FELIX RAMOS DE MENESES ()

APCEF/GO