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O Café da Tarde



















O Café da Tarde


Naquela tarde, a novidade foi a chuva que caia miúda em pleno mês de Setembro. Os pés estavam encricrilhados no sapato encharcado d’água e o aguaceiro que se seguiu atrapalhou os planos de quem passava por ali antes de chegar ao trabalho.
É claro que não foi diferente para ele. Sem ter planejado, acabou por entrar no shopping a fim de evitar os respingos que o fariam pegar uma gripe na certa. Aproveitou para ver as vitrines luminosas que atraiam os clientes que circulavam defronte das lojas como se fossem besouros tontos em volta da lâmpada. Faria assim até que a chuva passasse e pudesse retornar a tempo de resolver os compromissos do dia. Mas se esqueceu completamente do relógio; os olhos corriam ávidos no interior das lojas, enquanto ziguezagueava pelas alamedas se perdendo no tempo.
De repente, avistou uma grande banca de revista. Tinha predileção por elas onde buscava novidades do mercado editorial, e a Select Art daquele mês se encaixou perfeitamente no que procurava. Guardou-a na pasta e continuou se arrastando até dar num quiosque onde pôde folheá-la confortavelmente. Uma matéria sobre a proliferação de novos artistas no mercado de arte, em Sampa, chamou-lhe a atenção. Especialmente Marluce. Assinava os quadros assim mesmo. Só Marluce. Estranhamente, sentiu intimidade com as obras de cores vivas que revelavam uma energia alegre e as de tons escuros, soturnas, que davam no intimismo. Ele não sabia explicar o tipo de comunicação que aquelas telas lhe faziam sentir, mas entrava em estado de emoção pura, em êxtase, ao vê-las.
Quando levantou a cabeça, a garçonete aproveitou para oferecer um cafezinho.

- O senhor aceita um cafezinho? Temos de todos os tipos, são gostosos. Pode ser expresso, cappuccino bem grosso, forte, aromático! Hummm... Uma delícia! Acompanham torrões de açúcar e uma barrinha de chocolate amargo.
- Sabe, não tinha pensado nisso. Acho que vou querer tomar um cafezinho!
- Cappuccino?
- Não. Acho que não. Vou querer um simples, bem quente. Eh! Eu não gosto morno. Perde toda a graça.

O café foi servido como pediu: fumegando.
Fez uma breve pausa na leitura. Levantou a vista e depois encarou com interesse as louças e um garfo que estavam sobre a mesa guarnecendo o café que ela servira há pouco. A xícara esmaltada, que ele segurava pela orelha, revelou uma fina linha dourada na borda e outra azul mais grossa abaixo. Foi um gole que demorou e se espalhou pelas papilas até que o sabor se adensasse e tomasse toda a boca. O gosto na língua, o cheiro forte e a fumaça invadiram-lhe os sentidos remetendo-o diretamente ao passado.
Num relance, se viu criança. Estava sentado na copa da velha casa, enquanto a mãe passava o café da tarde. Um despretensioso cafezinho foi capaz de desencadear uma torrente de emoções, fortes lembranças que o levaram de volta à infância. Estava novamente frente a frente com a mãe que lhe transmitia carinho, falava de temores e dizia ensinamentos que lhe calavam fundo na alma. O café funcionou como um fio condutor de um amor figadal num mundo de afetividade já perdido em alguma esquina do tempo. Sentado num mocho coberto de couro de boi, reviu a mãe prostrada de cócoras cuidando de seus machucados. Currava-lhe as feridas com sumo de mastruz, depois amarrava as folhas miúdas maceradas para que sarassem ligeiro. Os cuidados se repetiam quando o inverno chegava e a bronquite asmática atacava o peito. Combatia a danada com lambedor de azeite doce, cozido no tacho, com cravinho e semente de algodão nativa; era um santo remédio. Mas aquele mundo lhe fugira sem mais nem menos como um fio que escapole entre os dedos da mão já relaxados e resignados. Sentiu saudade daqueles pequenos gestos que davam sentido a sua vida e geravam amor e compaixão.
Fazia companhia àquela mulher pequenina, dona de uma força de vontade tremenda que o ensinara a viver de modo simples, com humilde e honestidade. Não possuía nenhuma letra, só a obstinação e uma fortaleza de espírito que deixava todos abismados. Admiravam sua capacidade de se doar, de ser prestativa e se entregar às causas do próximo. Mas um traço contraditava a personalidade: o rancor. Guardava amor no coração, e não perdoava quem lhe fizesse algum mal. Sempre dizia nessas ocasiões: “Fulano saiu do meu coração” Depois disso, fechava-se em copas e não tinha mais jeito. Ele sorriu, olhando pro tempo, ao perceber que herdara o temperamento e sentiu orgulho de ter-lhe puxado o coração bravio. Deu um risinho e se serviu de outra chávena de café; bebeu um gole inteiramente frio até ver o fundo vazio. Foi o suficiente para desconectar-se daquela espécie de transe em que estava metido.
A garçonete apareceu. Aproveitou para oferecer mais um cafezinho.

- Não, não! Não precisa mais nada disso. Por hoje basta; já me foi bastante. Aliás, estava saboroso. Muito obrigado!

Pagou a conta e pôs uma boa gorjeta debaixo do pires. Ela sorriu agradecida. Guardou a revista, saiu apressado, querendo sumir dali o mais rápido que pudesse. Havia poucas pessoas numa típica tarde de terça-feira cheia de gente lisa. O dinheiro havia sumido e o shopping estava vazio, entregue às moscas, quando a chuva cessou. A maioria dos consumidores simplesmente evaporou ligeiro. Ligou novamente para o escritório, não voltaria mais lá. Entrou no carro com olhos cheios d’água, acelerou fundo. Estava com toda pressa do mundo para chegar a casa da mãe ainda a tempo do cafezinho no fim da tarde.
Fazia longos dias que não se viam. Martirizou-se sem entender a razão daquele distanciamento injusto de sua parte. Quis recuperar o tempo retesado na pressa do dia a dia, reclamava um tempo proustiano cheio de minúcias que a correria do dia a dia não lhe permitia viver. Queria mais uma vez tomar o café com sabor de amor materno, sentir os últimos raios de sol esvanecendo, mornando a tarde. O cheiro forte. Quis se inebriar com a borra escura no fundo do coador antes que a fumaça se desprendesse no ar fazendo desenhos sinuosos que sua imaginação cuidaria de dar forma no espaço. Um por um, sairiam pelo bico do bule azul marinho onde parecia estar represada sua história. Não quis mais viver longe daquelas memórias, nem dos cheiros que impregnavam a cozinha e recalcitravam em não o deixar por toda vida. Foi quando beijou a face tépida da mãe e seus olhos acinzentados pelo tempo se ergueram para ele. Ela o fitou bem fundo e disse: - Deus o abençoe e guarde, meu filho! Seus olhos se encheram d’água e obnubilaram como água de cacimba barrenta a embaçar a vista, perscrutando-o com amor e um quê de mágoa. Ele se pegou pensando, mas a distância é uma sala fria que sempre endurece o coração e antecede o remorso.


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Inspiração

A memória por muitas vezes tem uma insondável queda pelo mundo literário. A imagem na memória se guarda por tanto tempo e a qualquer hora pode saltar até cair numa página, onde ela ficará para sempre.

Sobre a obra

O fio condutor de o Café da Tarde é a narrativa da saudade contada a partir de flash da memória. O personagem faz um tipo de regressão se utilizando da memória. A partir desse ponto tudo faz evocar o passado, mesmo quando uma fumaça se desprende do bule cheio de café

Sobre o autor

Gosto de literatura, principalmente, contos que escrevo regularmente. São leituras minhas preferidas de longas datas: Cortázar, Poe, Lydia Davis, Juan Rulfo e Dalton Trevisan.

Autor(a): CELIJON ABREU RAMOS ()

APCEF/MA