Talentos

Bensoete

















Bensoete


Bensoete não teve sorte quando nasceu; veio ao mundo chulada. As visitas, na maternidade, ficavam horrorizadas exclamando diabruras entre os dentes diante da visão do rosto e da bunda mal formada: - Que menina feia! Sussurravam assim mesmo nas barbas do pai. A mãe, coitada, transpassada de dor nem reparava na indignidade das palavras proferidas por aquelas bocas malsonantes que não tinham dó e nem piedade.
O buchicho zombeteiro corria solto pelos quatro cantos dando conta de sua feiúra medonha. Deve ter contribuído para que se tornasse azeda e mal humorada e, em razão disso, não demorasse a ter sede de vingança pingando pelos caninos brancos afiados.
Soube disso quando vi os olhos tição e malignos me encarando agudamente naquela fotografia dentro da caderneta de compras que encontrei perdida no asfalto. Feita mulher, seja por capricho ou vingança, dera uma reviravolta e melhorara sem sombra de dúvidas o semblante. Mas, no 3x4 da fotografia, o olhar pavoroso estava ali na minha frente para não deixar nenhuma dúvida do que seria capaz de fazer se tivesse uma chance.
Não se soube a razão da proeza, mas, ao longo do tempo em que fora caçoada, guardou rancor na alma como atestava seu olhar eivado de amargura no retrato em preto e branco. Um dia iria se vingar de todos que caçoavam dela, jurou. Arranjaria algum estratagema para isso, era certo.
Mas o tempo opera mudanças que surpreendem. Num passe de mágica ficou amena, com o rosto até mais simpático. Ressabiado com a visão do demônio no retrato perdido, desejei jamais cruzar o caminho da dona daquele olhar endiabrado e torto que bem podia saltar fogo pelos olhos avermelhados ou pela venta resfolegante de raiva. Aquela maneirada no semblante só podia ser fingimento, e lhe veio a calhar.
Tive medo. Um calafrio me subiu a espinha quando alguém na esquina pousou levemente a mão fria em meu ombro e avisou: - Hei! Tem uma moça lhe chamando do outro lado da rua. Foi um susto! Pensei que Bensoete tivesse me alcançado na calçada com os dedos longos, magros e pontudos se projetando sobre mim como as mãos frias de um cadáver. Maldizia-se da mãe que lhe tacou nome tão estrambótico: Bensoete... Achou que a mãe quisesse mangar dela por ter nascido horrenda, repleta de amargura e cheia de desgosto que alimentava sua alma angustiada. Fiquei apenas parado, gelado de medo.
Mas o fato é que Bensoete me fitava cismada próxima à esquina da Rua Dezoito. Prostrava-se ali, desejando parecer normal como os filhos da redondeza eram. Como não podia, maldizia-se desconjurando deus e o mundo; falou pra si mesma naquela hora com uma raiva dilacerante: - Esses prestes vão ver. Vão me pagar! Pego eles já!
Receie que avançasse sobre mim como uma bruxa maligna zombando de suas vítimas. Mas, não. Ficou de longe me mirando enfezada. De repente, virou as costas e foi-se embora. Possuía o dom de apavorar as pessoas e depois sumir como se nada houvesse acontecido. Deixava todos tomados de medo sem saber onde de novo atacaria. Íamos deitar com aquele demônio maquinando na nossa cabeça e custávamos a pegar no sono com medo que ela aparecesse, de repente, e nos assombrasse noite adentro. O remédio era dormir com as luzes acessas clareando a cara, e com as portas e janelas bem trancadas. Assombração não gosta da claridade, só aparece nas trevas quando estamos tomados de medo. Era como se tivéssemos esquecido que ela vivia entre nós, longe ainda de se transformar em alma penada. Mas era assim que a tratávamos; quando dávamos conta, víamos seu olhar endiabrado se aproximando lentamente da gente. Vivíamos em pavor horrendo em tipo de desamor recíproco que a qualquer momento poderia desencadear algo muito grave, caso ela decidisse se vingar da gente.
Mas estávamos inteiramente em desvantagem e bastava que nos fitasse para que congelássemos de medo. Talvez ela apenas estivesse chispada e se satisfizesse e se divertisse ao ver o pavor estampado em nossa cara, porque logo virava as costas e saia de mansinho como se estivesse flutuando. Nessas horas, morríamos de medo do som gutural de sua voz de ventríloqua que vinha não sabíamos de onde chamando: Bensoeeete, Bensoeeete, Bensoeeete... E desaparecia do nada. De onde atacaria novamente, fosse de noite ou dia, ninguém sabia. Bensoeeete, Bensoeeete...

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Inspiração

O suspense dentro do universo literário do conto fantástico.

Sobre a obra

Deste o nascimento Bensoete quase pavor em sua volta. O conta conta os dissabores vividos pela personagem num clima de suspense que revela medo e desprezo,

Sobre o autor

Gosto de literatura, principalmente, contos que escrevo regularmente. São leituras minhas preferidas de longas datas: Cortázar, Poe, Lydia Davis, Juan Rulfo e Dalton Trevisan.

Autor(a): CELIJON ABREU RAMOS ()

APCEF/MA